I - O poetirmão
Na introdução de Adelto Gonçalves a Poesia sempre, reunião de poemas de Narciso de Andrade, o professor e romancista destaca a amizade literária entre Narciso e Roldão Mendes Rosa, poetirmãos, como lembra o autor de Barcelona Brasileira.
Os dois se conhecem ainda no ginásio no Colégio Santista. Nos anos seguintes a amizade se consolida. Nos primeiros anos pós-guerra, Narciso era um jovem repórter em Santos, trabalhava em O Diário, escrevendo notícias sobre o porto. Na Rua XV de Novembro, aos finais de tarde, unia-se a Roldão no Bazar Paris, livraria e ponto de encontro que atraía pensadores de todo o país. Adelto Gonçalves conta:
Ali, várias vezes, Narciso e Roldão encontraram e travaram longas conversas com Washington Luís, o elegante e discreto ex-presidente da República que vivia como uma sombra depois de seu regresso do exílio. [página 19]
Na virada dos anos 40 para os 50 - ainda estamos na introdução - Roldão já tinha se projetado como poeta. Nesse período ele passa a freqüentar o grupo de intelectuais reunidos por Cid Silveira, entre eles Miroel Silveira e Cassiano Nunes, para o qual o poetirmão levaria também Narciso.
O diálogo entre os dois acabou extravasando para a poesia. Em uma das estrofes de Ao poetirmão do vento e das maresias, de 1981, Roldão descreve o cotidiano portuário do repórter de vista poética:
O poeta sabe e sofre antes do corpo.
Ele ouvia (podia ouvir)
o horizonte e seus navios,
o último cargueiro da madrugada marítima
na névoa da barra,
As pombas no ombro do fundados da Cidade,
os imortais pardais
no ombro das árvores que anoitecem na praça.
Em Café da vida presa, de Narciso (foto), o ambiente é o do encontro. O interlocutor da voz narrativa não tem nome, não podemos afirmar que seja Roldão, mas é chamado de amigo por ela. O poema vale a citação completa:
Havia mesas e,
e eram muitas mesas.
Havia pessoas e,
eram muitas pessoas.
Sobre as mesas
café, refrescos, sanduíches.
Cigarros para as conversas,
fósforos para os cigarros.
Havia óculos tímidos
atravessado por múltiplos olhares.
Talvez um pouco de sonho
e até luar houvesse
naquela tarde, naquele café.
Mas o que havia mesmo, amigo,
era vida. Embora encarcerada
mas vida, muita vida
que ainda não fora vivida
e talvez um dia explodisse.
E talvez nunca.
Talvez resposta mais efetiva de Narciso a Roldão tenha sido a apresentação que escreveu para Poemas do não e da noite, obra póstuma de Roldão, com poemas selecionados pelo poetirmão Narciso, que termina assim:
Tendo sido escolhido para selecionar seus poemas em razão de nossa longa e fraterna amizade procurei agir como se fora o próprio poeta, fiel ao seu expresso desejo de jamais publicar algo que nada viesse a acrescentar (...).
Roldão Mendes Rosa não publicou nenhum livro em vida. Resta, pois, a pergunta: esta seria a obra que ele publicaria? A resposta, me parece, deverá ser dada pelo leitor no momento da fruição dos poemas.
A conversa entre os dois também ocorre na descrição poética da cidade portuária. Porto Literário escreveu uma vez sobre como o poema Porto, de Roldão, expressava certa “nostalgia da partida”, como caracterizei na ocasião, isto é, a expressão poética da “condição de quem vive em uma cidade portuária, ao sabor dos embarques e desembarques, mas sem partir em navio algum”. Idéia concretizada logo na primeira estrofe:
Por que
este amor ao cais
se o que espero
não viaja?
Cais, de Narciso, também é feito a partir da perspectiva de quem fica. Aí vai ele:
- 1-
Com tanto navio para partir
minha saudade não sabe onde embarcar...
- 2 -
A água comove a pedra
que parece fremir levemente.
Na oscilação breve das marolas
há homens malogrando olhares
vagos, indecisos, alongados.
(Completa ausência de tempo.
O calendário se desfaz
nas sombras, na brisa e na anatomia
recortada do estuário).
- 3 -
Cambia todos os tons
essa angústia a flor da água.
- 4 -
Não há gaivotas nem quaisquer
outros pássaros oceânicos.
Todavia aquela espuma brilhante
sugere o roçar logo de algum.
- 5 -
Silenciosamente pesados
firmam-se nas horas os navios,
fortuitos donos do porto,
transitórios proprietários
de metros de alvenaria
que fazem maior a tristeza
da imensa nostalgia portuária.
Ah! receber todos os adeuses,
todos os abraços, todos os olhares
de ida e volta e permanecer
ancorado na paisagem imutável!
- 6 -
Passarinho no topo do mastro
partirá ou há de voltar para a terra?
Esse espaço já se referiu uma vez à hipotipose, isto é, a descrição literária de um determinado espaço. A expressão é de Umberto Eco e tem a serventia de despertar as idéias para a individualidade de cada estilo e da narrativa de cada um dos poetirmãos em relação ao espaço portuário.
Primeiro Porto, de Roldão. Porto é o nome que se dá ao espaço econômico com infra-estrutura multimodal para o embarque e desembarque de pessoas, idéias e mercadorias, isto é, um lugar em que várias coisas ocorrem ao mesmo tempo. Quem vê o porto está fora dele. O ponto de observação é da cidade, de uma das janelas do centro ou das calçadas dos bairros portuários, cuja distância visual pode ser imaginada no verso “vejo lenços que acenam”.
Cais, de Narciso, opera em outro plano. Desta vez estamos dentro do porto - a perspectiva do repórter que entrevistava estivadores e trabalhadores do cais - e agora podemos notar um passarinho pousado no mastro e até a ação do mar e da maresia na beira do cais (“A água comove a pedra/ que parece fremir levemente.”, lembrando que fremir, diz o dicionário Michaelis, é vibrar, agitar-se levemente).
No espaço do cais, temos acesso à ação dos homens e à percepção do tempo (o da sucessão dos momentos e também o do clima) na paisagem humana.
Até a estrofe que caracteriza a nostalgia da partida é realizada a partir de quem está próximo para identificar os navios, “fortuitos donos do porto”, e seus transitórios “metros de alvenaria”.
Quem lá trabalha ou muito visita recebe um excesso de abraços, adeuses, acenos e olhares que a soma das partidas e chegadas “que fazem maior a tristeza/ da imensa nostalgia portuária.”.
Talvez esta sobrecarga de adeuses seja a origem da dúvida (“minha saudade não sabe onde embarcar”) que sinaliza que deixar a cidade portuária já tinha passado pela cabeça do narrador, mas ele nada faz e acaba por permanecer “ancorado na paisagem imutável”.
Epílogo
Não tenho como conferir se Roldão Mendes Rosa (1924-1988) nenhum livro havia publicado em vida por excesso de autocrítica, por algum motivo extraliterário ou pela falta na cidade de condições editorias, isto é, casas editoras e parque gráfico, hipótese que deve ser levada em conta para escrever também a história das edições, das editoras e dos espaços literários da cidade.
Considerando tudo isso, deve se ressaltar o quanto é importante esta edição em livro pela primeira vez dos poemas de Narciso de Andrade em Poesia sempre, poeta e intelectual nascido em 1925, farol que, com seus depoimentos e textos de e sobre a história e a ficção de Santos, há mais de meio século vem jogando luz nas letras desta cidade portuária.
Referências:
Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.
Mais:
Lacunas da história e da poesia santista são preenchidas por editoras da cidade, 03/abril/2007.
Roldão Mendes Rosa. Poemas do não e da noite. Com apresentação de Narciso de Andrade. São Paulo-Santos: Editora Hucitec, Prefeitura Municipal de Santos, 1992.
Mais:
Duas sombras sobre o cais e o estilo do imperador, 25/julho/2006.
Um porto para cada história, 18/julho/2006.
Paisagem, trabalho e máquinas narrativas, 10/janeiro/2006.
Considerações sobre um poema de Roldão, 13/setembro/2005.
Umberto Eco. Les sémaphores sous la pluie. In: Sobre a literatura. Rio de Janeiro: Editora Record, 2003.
Mais:
A expressão verbal do espaço portuário, 12/setembro/2006.