Sexta, 27 Dezembro 2024

No texto anterior foi mostrado como a estrutura narrativa de Querô – uma reportagem maldita trabalha em favor do conteúdo desta obra de Plínio Marcos de 1976. Isto é, as denúncias sociais que lemos no livro mantêm-se fortes não só porque os problemas ali relacionados praticamente não se alteraram, mas sobretudo porque as escolhas narrativas do autor fazem a história funcionar a cada releitura.

 

Embora seja uma obra de urgência, veremos hoje que Querô – uma reportagem maldita levou alguns anos para se concretizar.

 

I

Em 1968 Plínio Marcos iniciou aos domingos no jornal Última Hora a coluna Navalha na Carne, por sinal o nome de sua consagrada peça, lançada no mesmo ano. São contos e crônicas do autor. Em 1969, o espaço passa a ser publicado diariamente e, em julho, o autor se despede dos leitores da coluna e passa a realizar entrevistas para o jornal. Em 1973, a editora Nórdica publica Histórias das quebradas do mundaréu, coletânea de textos desse período, selecionados e organizados pela atriz Walderez de Barros, companheira de Plínio.

 

Os textos do “repórter de um tempo mau” foram divididos em seções: bandidagem, futebol, samba, macumba, cadeia, amor e diversos. Na seção bandidagem, há dois contos que mostram como o personagem Querô, mesmo ainda sem esse nome, já estava na cabeça de Plínio desde 1968.

 

II

O primeiro nome de Querô foi Bira Morfético, protagonista do conto homônimo que abre a coletânea. O início do conto é bem semelhante ao do romance. Vamos a eles, começando por Bira Morfético:

 

Tem gente que nasce sujo de arara e, por mais que se esforce, não tem jeito de tirar o pé do lodo. O Bira Morfético veio na piorada e ainda conseguiu se atolar mais. Cria maldita dos poleiros das piranhas, ainda pivete ficou entregue a si próprio. A mãe não agüentou o repuxo e, num momento de desespero, bebeu creolina. Sem tomar conhecimento do Bira, a mulher embarcou. Foi falar com Deus. Como não tinha pai, o pivete teve que se valer sozinho. E ele, por ele mesmo, era muito pouco. Quase nada. Ainda mais ali, nas bocas escamosas das quebradas, onde o jogo é bruto e a ordem é o salve-se-quem-puder.

 

O texto acima foi escrito originalmente para uma coluna diária ou semanal de um caderno de jornal diário. Era uma ficção curta, um conto. Bira Morfético se aproveita do poder aterrorizante de uma chaga na mão e com ela executa seus crimes. A chaga é uma arma em suas mãos. A linguagem é a do relato oral caro a Plínio Marcos, só que sem palavrões. Um caso de bairro (inventado ou não) que vira história para a cidade.

 

Em 1976, a passagem é recriada para se tornar a abertura de outro tipo de história: o romance, a ficção longa que se configura pela ação dos personagens em determinado quadro social. Apesar de ambas terem como título o nome dos protagonistas, são importantes as diferenças entre Bira Morfético e Querô – uma reportagem maldita:

 

Ou a gente nasce de bunda virada pra Lua, ou nasce cagado de arara. Não tem por onde. Assim é que é. Uns têm tudo logo de saída. Os outros só se estrepam. Não têm arreglo. É um puta de um jogo sujo de dar nojo. 

Eu vim na pior. Com urubu pousado na minha sorte. Me entralhei de saída. O filho da puta do meu pai encheu de porrada a filha da puta da minha mãe e se arrancou, deixando a desgraçada no “ora veja tou choca”. Eu não cheguei a ver o jeito que tinha seu focinho. E, se o corno na hora que saiu largou a grana em cima da mesinha, acho que nem a vaca que me partiu olhou a fuça do bestalhão.

 

A primeira diferença esta na primeira frase. Na semana passada escrevi em A estrutura narrativa de uma obra de denúncia social que o narrador apresenta duas situações opostas – bunda pra lua e cagado de arara – e, entre história de sorte e história de azar, fica com a segunda.

 

Ao propor-se uma escolha narrativa, a frase inicial sugere ao leitor uma promessa implícita: o texto que virá a seguir terá que cumprir a expectativa causada pela escolha. Bira perde sua chaga, seu nome e sua arma e, logo no segundo parágrafo, quem assume a narração é Querô: “Eu vim na pior.”. Sem a chaga, a única arma que resta ao personagem é o relato que conta a um repórter. Ao ser ficcionalizada, a imprensa passa de sujeito da informação (um jornal diário que traz um conto) a objeto literário (gênero narrativo que o autor aplica para dar suporte à história, cujo principal signo é o complemento “reportagem maldita”).

 

Breve observação é sobre o uso que o narrador faz da expressão “a gente”, sujeito indefinido que aproxima o leitor ao incluí-lo em sua expressão.

 

III

Ao fazer literatura ao quadrado (o relato do relato, metanarrativa, ferramenta tão ao gosto de William Shakespeare e suas peças dentro de peças), Plínio Marcos opta por um formato – o depoimento – que garante força narrativa, conteúdo social e escolhas estéticas. Por isso a obra resiste.

 

Ao transformar o conto em romance, o autor também muda a escala dos acontecimentos. Bira, que tem uma chaga, é o protagonista de um conto que mostra um “causo” acontecido em bairro afastado; Querô, que fala, que tem voz, por sua vez, é um personagem nacional, ele é qualquer uma das e todas as crianças já largadas por aqui nesse Brasil. E por isso a obra resiste.

 

 

IV

A alguns parágrafos além dos iniciais topamos com a alteração mais significativa entre o conto e o romance. Sai creolina e entra o querosene como substância que a mãe do protagonista bebe para se matar. Mas nesse caso há uma fase intermediária. Outro conto da coletânea é O batismo, a história do primeiro crime de Zico, o segundo nome de Querô, adolescente que parte para seu primeiro roubo, cuja ação forma a história. Conto de ação, O batismo tem como início uma cena de Zico e seus companheiros à espreita, na tocaia, esperando pelo caminhão do gás. Nesse caso, a origem do personagem é contada em flashback, a poucos momentos antes do assalto, onde o primeiro parágrafo de Bira Morfético é transformado em:

 

Nascera sujo de arara, com urubu pousado na sorte, e quebrou a cara de saída. Nunca soube quem foi seu pai e, da mãe, soube pouco.  Lhe contaram que a mulher que o pariu, logo depois de botá-lo no mundo, ficou ruim dos peitos e não se agüentou. Quando se tocou que o cupim ia roer sua caixa de catarro, sem dó e sem remédio, pediu estia pra madame dona da casa, deu o Zico pra ela, bebeu querosene e desertou da piorada que levava.

 

A mudança final ocorre no romance: no puteiro todos passam a tratar o filho da suicida, Jerônimo da Piedade, por querosene (apelido que detesta). Quando começa a freqüentar as turmas dos pequenos expedientes pelo cais, passa a ser chamado de Querô (apelido de que gosta).

 

Zico é um nome normal. Bira Morfético é nome de personagem de terror ou de crime. Já Querô é cheio de eufonia, isto é, a palavra soa bem. De sílaba forte e fechada no final, mantém uma proximidade com a possessiva conjugação “quero”, além de compartilhar a origem com milhares de apelidos dados por esse Brasil, a redução, assim como em Pati, Drica, Alê. Por isso a obra resiste.

 

V

Livro é o tipo de conteúdo cujo consumidor teve papel ativo em sua aquisição. Mesmo que hoje as compras por computador sejam possíveis, quem gosta de livros não deixa de freqüentar e gastar em livrarias. Quem comprou o romance dificilmente não sabia ou esperava pelos palavrões e cenas barra-pesada da obra.

 

Já o jornal é um conteúdo múltiplo. Não se pode prever a mesma atitude do leitor do romance de um torcedor que procura as notícias de seu time, ou de um leitor da sociedade civil organizada que vai direto para os editoriais; ou ainda de um leitor hermético que lê o jornal de ponta a ponta pela ordem dos cadernos; ou até do próprio leitor de romance quando confere o horóscopo. Aí, misturado com relatos vários e das mais distantes importâncias, o conto não pode trazer palavrões; não por pudores – já que polêmica certamente haveria – mas certamente pelo efeito negativo que a banalização do conteúdo traria ao relato.

 

Epílogo

Volto aqui à diferença temporal entre os dois relatos, os cinco anos entre o biênio 1968-1969 e 1973, para tratar de ligar o romance à época em que foi escrito e publicado. Esses anos cobrem o momento de endurecimento – para ficar num termo diplomático – do regime militar. Nesse espaço temporal o país vai do AI-5 aos porões da tortura e do extermínio. O Ato Institucional nº 05, de 13 de dezembro de 1968, é aquele que garante a constituição no primeiro artigo e a revoga no segundo:

 

Art 1º - São mantidas a Constituição de 24 de janeiro de 1967 e as Constituições estaduais, com as modificações constantes deste Ato Institucional.

Art 2º - O Presidente da República poderá decretar o recesso do Congresso Nacional, das Assembléias Legislativas e das Câmaras de Vereadores, por Ato Complementar, em estado de sitio ou fora dele, só voltando os mesmos a funcionar quando convocados pelo Presidente da República.

 

A evolução da agressividade da linguagem entre Bira Morfético e Querô – uma reportagem maldita nada mais que reflete – em negativo, a bem da verdade – o encrudescimento da ditadura.

 

Acostumado com a censura que o regime de exceção exercia sobre as atividades artísticas e, em particular, sobre suas peças, em 1976, Plínio Marcos decide escrever Querô – uma reportagem maldita no formato de romance, por considerá-lo mais fácil de passar pelo crivo censor do que mais uma de suas peças seria. Logo após sua publicação já havia uma adaptação para os palcos assim como há hoje a feita para o cinema, uma multiplicidade de Querôs que a censura não pôde eliminar.

 

Referências:

Plínio Marcos. Querô – uma reportagem maldita. São Paulo. Edição do Autor (4ª edição, 1ª edição de 1976).

Plínio Marcos. Nas quebradas do mundaréu. São Paulo: Mirian Paglia Editora de Cultura, 2004 (1ª edição de 1973).
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