Domingo, 29 Dezembro 2024

Clique aqui para ler a primeira parte deste artigo.

E sua crônica está estampada nas páginas do livro "Transatlânticos em Santos – 1901/2001", um autêntico sucesso, pois foi escrita com brilhantismo, digna de ser lido por todos.


O carrancudo (como disse Sérgio Moita) Highland Chieftain de 14 mil
toneladas, que levou a família Moita para Portugal. Col. do autor.

Eis o texto, emocionante e encantador:

Céu e mar

por Sérgio Moita

Quando ouço a expressão “Céu e Mar”, sei exatamente o que significa. Durante 12 dias, em uma oportunidade, e 11 em outra, vivi a sensação de que o mundo se resumia a Céu e Água.

Confesso que, a princípio, a situação foi assustadora, mas, depois, tenho que reconhecer, virou pura excitação – como só uma viagem de transatlânticos pode oferecer.

A primeira experiência foi em 1952. Eu tinha sete anos e, com minha mãe muito doente, meu pai resolveu retornar a Portugal e levá-la para perto da família. Os dois haviam vindo para o Brasil em 1940, ele primeiro: ela logo depois, com carta de chamada.

A primeira memória da viagem é no cais da cidade de Rio Grande – Rio Grande do Sul, onde morávamos.


O belíssimo transtlântico Santa Maria era gêmeo do Vera Cruz. Sua
viagem inaugural para América do Sul deu-se em novembro de 1953.
Col. do autor.

Em pé ao lado das malas, vi, bem ali à nossa frente, o que achei imenso, monstruoso, navio preto, com chaminé fumegante. Era, se a lembrança não falha, o vapor D. Pedro II, do Lloyd, que fazia a linha costeira e nos levaria a Santos.

Partimos pela manhã, em meio a acenos de despedida. De repente, o cais foi ficando pequeno, pequeno, até virar uma mancha azulada no horizonte e, finalmente desaparecer.

Foi a primeira vez que vi o céu e o mar apenas.

Foi também a primeira vez que senti a fragilidade de um navio – que depois fiquei sabendo, nem era tão enorme quanto eu imaginava e, muito antigo, parecia até acanhado perto dos outros – enfrentando mar aberto.

Debutei em viagens marítimas de uma maneira insólita. Mal havíamos deixado Rio Grande e o mar agitado começou a balançar o pobre – mas valente – D. Pedro II com se fosse uma casca de noz.

Tínhamos de dormir em beliches com grades e comer segurando os pratos para que não corressem pela mesa.

Metade dos passageiros passava boa parte do tempo vomitando  nos camarotes e na amurada.


Capa do livro "Transatlânticos em Santos -
1901/2001", onde está inserida a crônica de
Sérgio Pimentel Moita, "Céu e Mar".

A viagem foi rápida e nem bem havia me recuperado da primeira ventura no mar, quando fui apresentado ao meu primeiro transatlântico.

Também escuro, um pouco maior, mas muito mais imponente e transpirando segurança. Chamava-se Highland Chieftain, da Mala Real Inglesa.

Embarcamos logo em seguida e doze dias depois chegávamos a Lisboa.

Confesso que desci ao cais aliviado, não apenas pelo fim da viagem, mas por ver terminado o sofrimento da minha mãe – a doença tinha-lhe provocado uma paralisia quase que total e, entre outras dificuldades, era muito penoso locomover-se no navio.

Talvez até por isso não tenha prestado a devida atenção ao velho Highland.

Três anos depois, com a morte de minha mãe, meu pai resolve fazer o caminho inverso e retornar ao Brasil, onde, segundo ele, teríamos mais chances do que o pobre Portugal dominado pela ditadura salazarista.

Depois de idas e vindas para obter permissão de passagem – havíamos ido para Portugal em caráter definitivo, para baratear as passagens – eis-me novamente no cais.

Desta vez em Lisboa, com 10 anos e diante de um enorme transatlântico branco, nem de longe parecia com o soturno D. Pedro ou o carrancudo Highland Chieftain.

Era fantástico o Vera Cruz, irmão gêmeo do Santa Maria e, ambos, orgulho da Companhia Colonial de Navegação, de Portugal.

Certamente, aos 10 anos, olhei-o com outros olhos, deslumbrado com seu porte altivo, com a encorpada chaminé apontando para o céu, ligeiramente inclinada para trás, e as centenas de vigias enfeitando o casco brilhante.

Foi, sem dúvida, amor à primeira vista.

Saímos de Lisboa quase na hora do almoço. Da amurada fiquei observando aquele mesmo fenômeno de que me lembrava no Rio Grande: a terra desaparecendo, até sumir.

No segundo dia de viagem, já em mar aberto, percebi a principal diferença entre o Vera Cruz, o D. Pedro II e o Highland Chieftain: enquanto um, o D. Pedro II, se submetia à vontade do mar e o Highland lutava para vencer as ondas, o Vera cruz navegava tranquilo, impávido, como se percorresse uma estrada finamente asfaltada.

Empolgado, fiz de cada setor do imenso navio pedaços de um mundo só meu, muito particular.

Corria da terceira classe, onde estávamos, para a segunda e, quando não me viam, para a primeira, com seu luxo inatingível, mas deslumbrante.

Havia um lugar, em particular, que me fascinava: a casa das máquinas. Sempre que podia, ia até lá.

Era um local quente, cheio de vapor, onde enormes pistões subiam e desciam sem parar.

Vários operários trabalhavam ali, todos sem camisas e suando em bicas.

Lembro-me de um belo dia ter descido para o lugar que, para mim, a partir daquele instante, era o coração do navio, onde a vida era bombeada para o resto da embarcação.

Durante 11 dias, tempo decorrido entre a saída de Lisboa e a chegada a Santos, passando pela Ilha da Madeira e por Salvador, o Vera Cruz foi o mais fantástico parque de diversões que uma criança podia ter.

Da abafada casa de máquinas ao imenso tombadilho, onde as pessoas alternavam caminhadas, leitura e jogos, passando pelos corredores estreitos, perfeitos para esconde-esconde, tudo era território livre para brincadeiras.

Mesmo o fato de a vigia de nossa cabine estar quase à altura do nível do mar me encantava: a qualquer momento, pensava eu, poderia estender a mão e tocá-lo.

Até que, em uma bela noite, o céu desabou sobre nós. Fazia muito calor e eu e meu pai dormimos no convés, deitados em espreguiçadeiras.

Por volta da meia-noite, acordamos com grossos pingos de chuva. Nem bem havíamos aberto os olhos, ainda sonolentos, e os grossos pingos transformaram-se em tempestade.

Não em uma tempestade qualquer, mas daquelas aterradoras, que só acreditamos existir nos livros e nos filmes.

Foi um espetáculo assustador, mas, ao mesmo tempo, único e maravilhoso.

O mar enraivecido atirava-se contra o Vera Cruz, como que querendo destroçá-lo, lambendo os conveses de lado a lado.

Ondas gigantescas, ampliadas pela luz fantasmagórica dos relâmpagos, varriam o convés, que às vezes se confundia com a água, como se o navio estivesse afundando.

Nem sei exatamente quanto tempo durou a tormenta, até porque, a certa altura, apesar da minha resistência, meu pai me puxou para dentro, mas aquela cena jamais se apagou da minha memória.

Apesar de o navio ter sido pouco afetado pela tempestade – o Vera Cruz quase sereno no curso, ali eu pude perceber a terrível e indomável força do mar, contra a qual nada se pode fazer.

Fica-se preso a um sentimento de absoluta, total, impotência, mansamente entregue nas mãos de Deus, do destino, seja lá o nome que se dê ao desconhecido, ao imponderável que cerca um momento desses.

A viagem ainda me reservaria outro susto, menos dramático.

Certo dia, estava eu nas aventuras de exploração, quando começaram a soar as sirenes.

Era o sinal para que todos corrêssemos aos camarotes, colocássemos os coletes salva-vidas e, sem perda de tempo, nos dirigíssemos ao convés.

Nem é preciso dizer que, na confusão que seguiu, não achei nem o colete nem o meu pai, que, desesperado, me procurava pelo navio.

Ficamos os dois sem participar do que, depois fiquei sabendo, era um exercício de salvamento.

Tomei um merecido – será? – castigo: durante todo o restante do dia fiquei sem poder sair da cabine.

A vida de bordo, porém, continuou seu ritmo. No dia seguinte, notei um corre-corre diferente, de marinheiros e funcionários, enfeitando o navio e construindo um palco.

Curioso, descobri antes dos demais que se tratava do preparativo para a festa pela passagem do Equador. Nessa noite, finalmente, misturaram-se as classes.

Houve uma grande comemoração, oferecida pelo comandante. Até o cantor português Francisco José, que também estava vindo para o Brasil, se apresentou.

A chegada a Santos foi com festa – naquela época era assim, mas, para mim, a alegria da chegada misturou-se estranhamente a uma tristeza, a deixar o Vera Cruz.

Desci as escadas dividido, levado pela mão de meu pai. Um rápido olhar para trás foi o meu adeus ao imenso navio. Nunca mais o vi.

A vida levou-me para outros lados, me fez, infelizmente, crescer, mas, até hoje, passado tantos anos, não há momento em que, olhando para o mar, não me recorde daquelas viagens – as mais fantásticas que já fiz na vida, como só os transatlânticos eram capazes de proporcionar.

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