Conheci Hélio Schiavon, por volta de 1978, quando fui à editoria de Porto & Mar de A Tribuna, levar uma matéria sobre transatlânticos. Fui recebido com aquela simpatia que lhe era peculiar. Na oportunidade, fui apresentado ao amigo José Carlos Silvares, então editor da conhecida seção marítima e portuária.
Foto do jornalista Hélio Schiavon, tirada em 2005, no Complexo Cultural do Porto de Santos 2005. Acervo: L.J. Giraud.
Dado a esse conhecimento, a partir de 1995 passei a ser colaborador do conceituado jornal. Primeiro escrevia uma pequena matéria, na coluna Memória, logo abaixo da coluna de José Carlos Rossini, Rota de Ouro e Prata, muito conhecida por contar histórias dos navios de passageiros que vinham para América do Sul. Essa coluna saia às quintas-feiras.
Posteriormente, ganhei espaço, no Porto & Mar, publicado aos domingos, cujo tema era variado, mas sempre ligado aos navios de todos os tipos, mercantes e de guerra de todas nacionalidades, além de fatos ocorridos no Porto de Santos.
O célebre Funchal de 1961, que participou de várias temporadas
de cruzeiros no Brasil, ainda com as cores da CTM - Companhia
Portuguesa de Transportes Marítimos. Saindo de Lisboa em 13 de
maio de 1982. Acervo: Luís Miguel Correia.
Por essas razões, passamos a ter uma boa amizade, que durou até o dia em que recebi a notícia de seu falecimento, no dia 8 de fevereiro de 2008, vítima de um acidente vascular cerebral (AVC).
Quem conheceu Hélio, pode testemunhar que estar ao lado dele era só descontração e alegria.
Hélio Schiavon não só escrevia assuntos portuários, muitas vezes, pelo seu estilo de escrever, deparei com matérias carnavalescas, policiais, esportivas e de automóveis. Mas o que mais gostava, certamente era escrever sobre tudo que era relacionado com o maior porto da América Latina.
O inesquecível Vera Cruz de 1952, da Companhia Colonial de
Navegação, atracado no cais do estaleiro Cockerill, em Haaboken, na
Bélgica. O navio fez a linha do Brasil até 1961. Foi desmantelado
em Formosa em 1973. Pintura de Fernando Gomes Lemos.
Assim, todas as vezes que passo pelo prédio de A Tribuna, ali na João Pessoa, fica impossível não lembrar desse grande amigo que nos deixou.
A coluna Recordar desta semana homenageia, o jornalista que era o retrato do Porto de Santos, através de uma matéria de sua autoria publicada no Porto & Mar, em 1996, posteriormente parte desse texto foi atualizado, e fez parte do livro, de minha autoria - Transatlânticos em Santos – 1901/2001, no capítulo – Na Linha do Tempo, onde vários amigos escreveram o que bem entendessem sobre os navios que passaram pelo cais da Cidade de Santos. Eis a matéria:
O sonho não acabou
Os transatlânticos são eternos. Como os oceanos. A opulência e a ostentação dos palácios flutuantes deram lugar a modernos e seguros hotéis de luxo; e as longas travessias se tornaram excitantes cruzeiros de verão. O encanto é o mesmo, porque dos tempos românticos ficaram a sedução, o charme, a fascinação, a essência da magia. O sonho não terminou.
Nesta viagem ao passado, os transatlânticos portugueses merecem atenção especial. Na época em que alemães; ingleses e italianos disputavam a primazia dos mares, os navios de Portugal não ficaram atrás. Ao lado do Pátria e Santa Maria, um belo exemplo é o Funchal, o mais brasileiro dos transatlânticos.
O Conte Verde foi um dos mais belos transatlânticos italianos que
passou pelo Brasil no século 20. Pertenceu ao Lloyd Sabaudo.
Acervo - L.J. Giraud.
Poucos sabem mais sobre esse navio do que Laire Giraud: “É uma fábrica de sonhos. Entre ele e o Brasil existe muito mais que tradição. É um ponto de encontro permanente. Embarcar no Funchal é esta lá e cá ao mesmo tempo”. O Funchal já foi casa de reis, diplomatas, artistas e milionários. Em 1972, trouxe para o Brasil os restos mortais de D. Pedro I.
Outro navio português importante foi o Vera Cruz, que em 1952 transportou ao Rio e a Santos o Capitão dos Portos de Lisboa, Cte. Francisco Fialho, pai do Cte. Gabriel Lobo Fialho, diretor da Revista Marinha. E também não se pode esquecer o Serpa Pinto, na década de 40, transportando milhares de passageiros, em fuga da Europa, destruída pela guerra.
Flashback I
Durante o conflito, tempos de medo e desconfiança, o navio Windhuk oferecia uma surpresa, ao aparecer na barra com nome Santos Maru, bandeira japonesa. Seu comandante havia enganado os bloqueios ingleses que patrulhavam o Atlântico, mas não enganou os atalaias (vigias da Praticagem) que do Monte Serrat observavam o porto, com lunetas. Em 1939, Santos era um porto neutro, mas logo a Brasil declarou guerra á Alemanha. O navio foi preso e a tripulação, enviada para campos no interior. O italiano Conte Grande, pelos mesmos motivos, também foi “hóspede” do porto santista entre junho de 1940 a abril de 1942.
Dizem que o famoso Cap Arcona, da Hamburg-Sud, por sua
imponência, foi o mais luxuoso transatlântico alemão da linha da
América do Sul. Acervo: L. J. Giraud.
O Windhuk foi um navio alemão que marcou presença no porto. Mas também são inesquecíveis os navios Cap verde, que começou viagem inaugural em 8 de maio de 1900, assinalando o início das atividades da Hamburg-Sud no Brasil; O Cap Norte, o Monte Olivia e o Cap Arcona, conhecido como Rei da América do Sul. Entre 1927 e 1939 era o mais luxuoso, o mais rápido, o impecável, qualidades que o colocaram entre os mais famosos “fora de série” em Santos.
Na virada do século 20, quando os ingleses ainda eram os reis dos mares, a presença britânica também era marcante, a partir do Nasmyth, que em 1892 inaugurou primeiro trecho de cais. O brilho se estendeu pelo novo século com o Magdalena, Amazon, Araguaya, Almanzora, Alcantara. E continuou depois da guerra, com o Andes, ou o Sagafjord, navegando em redor do planeta em 1993, como fez mais tarde o Queen Elizabeth 2, da Cunard Lines.
Flashback II
O povo dançava nas ruas quando o Queen Elizabeth 2, o mais luxuoso e imponente navio inglês na época, deixou o porto pela última vez, em fevereiro de 96. Ele saía rápido pelo estuário, precedido pelo italiano Eugenio C, todo branco e minúsculo, contrastando com o casco vasto e negro do navio inglês. Anoitecia e, após a primeira curva, os passageiros avistaram a multidão. Eram milhares de homens, vestidos de mulher, dançando na Ponta da Praia. “It’s the Dorothea”, explicou o capitão, orgulhoso de mostrar que conhecia as coisas do Brasil. O coquetel de boas-vindas era servido nos salões e os turistas se espremiam contra as vidraças para ver o show inusitado. “It’s the Dorothea Bath, festa típica de Santos, realizada há um século, no Carnaval”.
O transatlântico francês Normadie, o mais glamouroso
transatlântico em todos os tempos. Acervo - L. J. Giraud.
Os italianos também marcaram época. Na década de 20, o Principessa Giovanna, o Principessa Mafalda; e, na década de 40, Conte Biancamano, Conte Rosso, Conte Grande, Anna C, Andréa C, Enrico C e mais o famoso Achille Lauro, construído em 1947 e destruído por incêndio em 94, em pleno mar. E ainda o Giulio Cesare, o Cristoforo Colombo e o Eugenio Costa (Eugenio C), o mais conhecido dos brasileiros, por ter freqüentado durante mais de 30 anos o Brasil.
Flashback III
Nem tudo era romantismo. Os transatlânticos lotados de imigrantes também traziam medos, dramas, doenças e decepções. A carta de um imigrante, que pode ter sido passageiro de qualquer navio, retrata seu desespero, como coletou Rossini no livro ROP: “Milhares de pessoas de todas as idades, sexo e condições sociais se acotovelavam no cais de Gênova falando, gesticulando, chorando e rindo, partindo e ficando, em muitos casos, para sempre. A bordo, choros, rezas, imprecações que explodiam a cada onda assustadora; vapor trepida, se ergue para o céu e mergulha em vales profundos. As dores, os vômitos, as contorções se misturam aos comentários cochichados – há doenças contagiosas a bordo; cinco ou seis pessoas morrem cada dia de borrasca. Como é longe o suspirado Porto de Santos”.
Ah, os franceses. Ainda na primeira metade do século, desfilaram o Groix, o Aurigny, o Provence, o Pasteur, o France, todos querendo imitar a glória do Normandie, orgulho nacional da França. Ele fez sua primeira viagem em 1935 e foi misteriosamente destruído por incêndio, em 9 de fevereiro de 1942, no cais de Nova Iorque.
O Rembrandt que antes foi o famoso Rotterdam da Holland
America Line, fez grande sucesso nas temporadas brasileiras.
Acervo: L. J. Giraud.
Atores, pintores, escritores e outras personalidades deram brilho à curta vida do transatlântico, que teve como passageiros James Stewart, Cary Grant, Hemingway, Marlene Dietrich, Salvador Dali, Thomas Mann, Jules Romain e Antoine de Saint-Exupéry, que mais tarde teve um navio com seu nome.
Flashback IV
Quando o Príncipe de Astúrias navegava rumo a Santos, após uma festa de Carnaval, o comandante do majestoso transatlântico espanhol não poderia imaginar que algumas horas depois estaria vivendo o maior tragédia já ocorrida com transatlânticos no Brasil. Durante a noite, em meio á forte tempestade, por motivos ignorados, o navio colidiu contra recifes próximos de Ilhabela, Já era madrugada do dia 5 de março de 1916, quando aconteceu a colisão. O naufrágio foi imediato e 477 pessoas morreram na escuridão.
Em um século, a lista dos transatlânticos memoráveis é interminável. Não se pode esquecer os holandeses Boisevain, Ruiz, o Rotterdam, que virou Rembrandt. Nem os norte-americanos American Legion, Panamericana e Brasil; o russo Kazaktban, e ainda Kasato Maru e Shin Sakura Maru, primeiro e último navios a transportar imigrantes japoneses.
O italiano Eugenio C, depois Eugenio Costa, navegou pelo Brasil
e o Prata durante 30 anos. Ficou com o título do navio mais querido
dos brasileiros. Acervo - L. J. Giraud.
Dos transatlânticos nacionais, finalmente, ainda permanecem na memória os quatro Cisnes Brancos do Lloyd Brasileiro, que tiveram destinos inglórios, como a própria empresa de navegação. Vendidos na década de 60, o Princesa Leopoldina e o Princesa Isabel (Giraud viajou em ambos) foram rebatizados de Odysseus e Coral Princess, enquanto o Rosa da Fonseca e o Anna Nery receberam os nomes de Athirah e Salamis Glory. Trinta anos depois de vendidos a preço irrisório, ainda realizavam cruzeiros sob as bandeiras grega, cipriota e Indonésia.
O sonho não acabou
Quando os aviões começaram a substituir os navios nas viagens intercontinentais, os transatlânticos passaram a ser construídos para cruzeiros de entretenimento. O primeiro foi o Caronia, da Grã-Bretanha, ainda em 1948. Salões confortáveis, piscinas, cassinos, Spas, bares, boates, restaurantes e ricos shows em amplos teatros. No Brasil pode se dizer que a febre dos cruzeiros marítimos só chegou ao auge em 2000/2001, pois nenhuma outra temporada foi tão rica como a desta virada de século. Mais de dez transatlânticos passaram por Santos, entre eles Europa, Triton, Silver Shadow, Costa Marina, Costa Allegra, Princess Danae, Mercury e Splendour of the Seas. Anotem estes nomes porque eles já são história.
Volto a dizer mais uma vez: quem sabe as nossas autoridades municipais e portuárias, resolvam dar o nome de Hélio Schiavon a um dos locais do Porto de Santos?
Bem que ele merece, afinal escreveu tantas coisas do Porto de Santos, que muitas delas incorporadas na História da Cidade que tem o mundialmente conhecido Porto do Café.