Quinta, 26 Dezembro 2024

Comecemos com uma descrição:

No decorrer do processo de mudança política, os cargos rendosos e decisórios – antigos e novos – passaram rapidamente para as mãos desses grupos de recém-chegados à distinção social, premiados com as ondas sucessivas e fartas de “nomeações”, “indenizações”, “concessões”, “garantias”, “subvenções”, “favores”, “privilégios” e “proteções” do novo governo.

Parece, mas nem a situação nem o texto são recentes e nem tratam de negociatas em Brasília ou no Porto de Santos. A autoria é do historiador Nicolau Sevcenko e, nesse texto que faz parte do livro “Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República” (1983), ele descreve o clima que envolvia a então capital federal, o Rio de Janeiro, durante um momento, a virada do século XIX para o século XX, em que se dariam as grandes transformações urbanas (e suas obras e concessões de serviços públicos) nas grandes cidades brasileiras.

O trecho acima faz parte do primeiro capítulo do livro, “Rio de Janeiro, capital do arrivismo”, cuja epígrafe de Lima Barreto serve para as transformações também de hoje:

De uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na cousa muito de cenografia.

Lima Barreto e Euclides da Cunha são os dois personagens principais do livro, cujo título se refere aos “projetos nacionais” que cada um deles projetava em suas obras, opostos entre si e ambos derrotados pelo arrivismo de então. Daí, para Sevcenko, a importância de se escrever história a partir dos escritos literários, não porque a ficção ilustre os fatos, mas devido a seu poder de projeção e das expectativas da sociedade, como explica na introdução:

A literatura, portanto, fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. (...) A produção dessa Historiografia teria, por consequência, de se vincular aos agrupamentos humanos que ficaram marginais ao sucesso dos fatos. Foi sempre clara aos poetas a relação entre a dor e a arte. Esse é o caminho pelo qual a literatura se presta como um índice admirável, e em certos momentos mesmo privilegiado, para o estudo da história social.

Ao final da introdução, Sevcenko fala sobre os resultados das missões de Lima Barreto e Euclides da Cunha:

Cada um deles é como que uma síntese das alternativas históricas possíveis, que se colocavam diante dos olhos dos autores, pelas quais lutaram energicamente, derrubando moinhos de vento para sorriso desconfortável dos poderosos. Esta é a história daquela batalha contra os moinhos e sua derrota.

A literatura de hoje teria uma missão?

Referência
Nicolau Sevcenko. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação cultural na Primeira República. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. (1ª ed. 1983).

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