Comecemos com uma descrição:
No decorrer do processo de mudança política, os cargos rendosos e decisórios – antigos e novos – passaram rapidamente para as mãos desses grupos de recém-chegados à distinção social, premiados com as ondas sucessivas e fartas de “nomeações”, “indenizações”, “concessões”, “garantias”, “subvenções”, “favores”, “privilégios” e “proteções” do novo governo.
Parece, mas nem a situação nem o texto são recentes e nem tratam de negociatas em Brasília ou no Porto de Santos. A autoria é do historiador Nicolau Sevcenko e, nesse texto que faz parte do livro “Literatura como missão: tensões sociais e criação cultural na Primeira República” (1983), ele descreve o clima que envolvia a então capital federal, o Rio de Janeiro, durante um momento, a virada do século XIX para o século XX, em que se dariam as grandes transformações urbanas (e suas obras e concessões de serviços públicos) nas grandes cidades brasileiras.O trecho acima faz parte do primeiro capítulo do livro, “Rio de Janeiro, capital do arrivismo”, cuja epígrafe de Lima Barreto serve para as transformações também de hoje:
De uma hora para outra, a antiga cidade desapareceu e outra surgiu como se fosse obtida por uma mutação de teatro. Havia mesmo na cousa muito de cenografia.
Lima Barreto e Euclides da Cunha são os dois personagens principais do livro, cujo título se refere aos “projetos nacionais” que cada um deles projetava em suas obras, opostos entre si e ambos derrotados pelo arrivismo de então. Daí, para Sevcenko, a importância de se escrever história a partir dos escritos literários, não porque a ficção ilustre os fatos, mas devido a seu poder de projeção e das expectativas da sociedade, como explica na introdução:
A literatura, portanto, fala ao historiador sobre a história que não ocorreu, sobre as possibilidades que não vingaram, sobre os planos que não se concretizaram. Ela é o testemunho triste, porém sublime, dos homens que foram vencidos pelos fatos. (...) A produção dessa Historiografia teria, por consequência, de se vincular aos agrupamentos humanos que ficaram marginais ao sucesso dos fatos. Foi sempre clara aos poetas a relação entre a dor e a arte. Esse é o caminho pelo qual a literatura se presta como um índice admirável, e em certos momentos mesmo privilegiado, para o estudo da história social.
Ao final da introdução, Sevcenko fala sobre os resultados das missões de Lima Barreto e Euclides da Cunha:Cada um deles é como que uma síntese das alternativas históricas possíveis, que se colocavam diante dos olhos dos autores, pelas quais lutaram energicamente, derrubando moinhos de vento para sorriso desconfortável dos poderosos. Esta é a história daquela batalha contra os moinhos e sua derrota.
A literatura de hoje teria uma missão?Referência
Nicolau Sevcenko. Literatura como Missão: Tensões Sociais e Criação cultural na Primeira República. Edição revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003. (1ª ed. 1983).