Sexta, 26 Abril 2024

Um dos grandes desafios da ficção, escreve a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, é ir aonde não chega o relato da experiência humana. Ela trata disso ao analisar a literatura produzida sobre o cárcere dos regimes militares da América Latina e a impossibilidade do relato de testemunho de dar conta de toda a experiência da prisão, pois só passaram por ela os que foram torturados até a morte ou “desaparecidos”. Assim os relatos dos sobreviventes acabam sempre “incompletos”. Daí a defesa da ficção como busca de significados e a afirmação de que só ela pode chegar a alguns lugares a fim de iluminar (ainda que indiretamente) a trajetória humana. Assim ela encerra seu livro “Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva”:

A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.

Essa estratégia de se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo, é o que move Nawal, protagonista de “Incêndios”, texto de Wajdi Mouawad que o grupo teatral mexicano Compañía Tapioca Inn apresentou nos dias 6 e 7 no galpão do Coliseu durante o Mirada, o Festival Ibero-Americano de Artes Cênicas de Santos, que vai até o dia 15.

Em um encenação teatral, as relações entre experiência e reflexão se complicam ainda mais pois elas são mediadas pelo corpo do ator, corpo de dupla ação que veicula a experiência dos personagens ao mesmo tempo em que dá voz ao texto. Em “Incêndios” isso se complica ainda mais pois Nawal, uma mulher que passou os últimos anos de vida sem falar nada, volta a ter voz apenas na leitura de seu testamento. Além de ler o texto do documento, o advogado de Nawal entrega duas cartas a seus filhos, os gêmeos Júlia e Simón, endereçadas ao pai deles, que achavam que estivesse morto, e a um irmão que nem imaginavam que existisse. O testamento é claro, só entenderão a mudez voluntária da mãe quando as engrenagens de sua história começarem a ser movidas.

Júlia, professora de matemática em meio a um doutorado, busca imediatamente compreender a nova situação e parte para o Líbano, terra natal de sua mãe, em busca de seus traços deixados naquela terra durante as guerras e massacres do final dos anos 70. Ali, ela descobre que sua Nawal foi impedida pela própria mãe de criar o filho de uma gravidez fora do matrimônio e a criança acabou em um orfanato. No dia em que a criança nasce, Nawal ouve da avó algo assim: “Saia daqui, aprenda a ler, a escrever, a fazer contas e a pensar. Quando souber volte para cá para escrever meu nome em minha tumba”.

Clique aqui para ler a segunda parte deste artigo.

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