I
De alguns poemas sobre o Porto de Santos apresentados na coluna anterior, retomo “Engolidores de contêineres”, de Ademir Demarchi, do livro “Costa a Costa” (2012), reunido no volume “Pirão de Sereia” (Realejo / Facult), lançado em abril.
imensas massas náuticas
os navios de perto impactam
a paisagem e a comem
num pedaço de essencial
remendos entintados de fome
na natureza morta da baía
mais pesados que a água, bóiam
vorazes engolidores de contêineres
interferências paquidérmicas
que deslizam pelos olhos e viajam
Logo no início o narrador nos coloca onde se pode ver navios de perto, onde parece que “impactam” a “comem” a paisagem. Estão tão próximos que vemos seus “remendos entintados”, são criaturas “paquidérmicas”, “vorazes engolidores de contêineres”. E o poema termina com os navios, não importa se besta ou mecanismo, em sua funcionalidade, isto é, “viajam”. Na coluna anterior, o poema foi reunido entre os que tratam o Porto de Santos como um cenário de desolação, “talvez hostil à cidade e seus habitantes”, sendo acessível apenas em alguns pontos como o descrito acima.II
De Alberto Martins, apresentei alguns poemas e versos que caracterizam essa desolação também em sua obra, entre os quais “Da Ponta da Praia”, do livro “Cais” (2002, Editora 34) em que identifica no título o local de onde obtemos a perspectiva do poema anterior. Os navios estão perto, a ferrugem “que rói as chapas” é visível a olho nu. É o pedaço desde o final da praia pela calçada até o Ferry Boat, acompanhando as operações ao longo do canal cada vez mais estreito para o ziguezague de barcas, práticos e balsas e, “devorando a outra margem”, os grandes navios:
Tão perto de tocar
o instante quase-já
de toda viagem;
no entanto, rente à praia
é tanto rente ao fundo
que só percebo
o espesso casco negro
brilhando à tona
um segundo. E depois?
Viagem houve de fato?
Ou tudo não passa
de um golpe
do acaso?
Mas –
e o casco?
É úmido. Está coberto
de cracas e a ferrugem
que rói as chapas
rói a carga
é visível
da Ponta da Praia
a olho nu.
Da calçada vejo
a quina de aço
– feito cunha –
na paisagem:
a Pouca Farinha
o forte em ruínas
o Góes… e por aí vai,
devorando a outra margem.
Boa viagem.
Além da perspectiva, nota-se como o poema chega ao final também com a palavra “viagem”, só que como substantivo. Apesar de estilos e ritmos bem diferentes um do outro, os mesmos procedimentos: a adoção da perspectiva e a ambientação no cenário desolado e a aproximação do mecanismo/criatura que, por sua vez, come ou devora a margem e a paisagem. Para encerrar, o par “viajam” / “viagem”.Em “Cais”, o caráter “devorador” dos navios se mostra também nas gravuras do autor, inclusive a da capa, nas quais eles estão em uma escala superior a das edificações.
Referências
Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.
Ademir Demarchi. Costa a Costa. In: Pirão de Sereia. Santos: Realejo Edições / Fundo Municipal de Cultura, 2012.