As narrativas que envolvem o Porto de Santos costumam estar ligadas ao mundo do trabalho ou à natureza mesmo da sua atividade. Temos no primeiro caso a vida dura dos estivadores em “Navios Iluminados” e a batalha ideológica de “Agonia na Noite”, e, no segundo, os poemas de Alberto Martins ou Roldão Mendes Rosa.
Embora a ação não se passe no porto, o enredo de “Dinheiro Queimado” leva o ambiente portuário para outro registro literário, o romance policial. A obra do argentino Ricardo Piglia, de 1997, trata de um assalto em San Fernando, município da Grande Buenos Aires, e da fuga dos criminosos para Montevidéu através de uma viagem de duas horas pelo porto de Tigre, tendo o Brasil como suposto destino final dos fugitivos.
No Epílogo, o autor explica que o romance é baseado em um episódio real ocorrido entre 27 de setembro e 6 de novembro de 1965, considerado um dos mais fantásticos da crônica policial portenha. A versão cinematográfica do livro, que manteve o nome original (“Plata Quemada”), teve certa repercussão no Brasil, ainda que não tenha se mantido fiel ao original.
O porto de “Dinheiro Queimado” não é o das cargas ou das partidas de transatlânticos, do trabalho pesado da estiva ou dos guindastes. É o da rota de fuga traçada por meio de contatos com o submundo do contrabando, tráfico, prostituição e casas de tango de última categoria.
Fontán Reyes, cantor de tango parente de um funcionário da prefeitura de San Fernando que dá para a quadrilha a dica do carro forte com o pagamento dos funcionários, é um exemplo dos tipos do porto recriado por Piglia:
“Até então havia dado cobertura para uns trabalhos sujos de seus amigos. Tinha-os escondido, depois de um assalto, em sua casa em Olivos, tinha levado pó para Montevidéu e tinha vendido uns ‘papelotes’ nos botecos do porto.”
São quatro os integrantes da quadrilha para tantos a serem subornados. A rede de contatos é formada por policiais e políticos corruptos, informantes da polícia e dos criminosos, barqueiros e fornecedores de armas para o assalto, todos com interesse em receber parte do saque. Um deles é Cambaio Bazán, que no meio do livro aparece morto logo num bar do porto.
O perfil de Carlos Nocito, o parente de Fontán Reyes, mistura bem a atividade política com a criminosa:
“Dessa forma (segundo os jornais) se soube como foi planejado o assalto aos agentes pagadores do município. A informação vazou do Conselho Municipal. Carlos A. Nocito, de trinta e cinco anos, casado, primo irmão de Atir Omar Nocito, aliás Fontán Reyes, trabalhava como inspetor de Obras Públicas do município de San Fernando. Era um homem influente, que fazia favores na região, um típico cacique do peronismo na fronteira das atividades delituosas. Em outro lugar teria sido um homem da máfia, mas aqui se dedicava a pequenos negócios que incluíam as propinas e a proteção a banqueiros de quiniela e a puteiros clandestinos. Era sócio de uma cumbuca em Olivos e tinha interesse em distintos pontos da costa e era filho de don Máximo Nocito, aliás Nino, presidente do Conselho Municipal de San Fernando, eleito pela Unión Popular. Preso e interrogado, Nocito acabaou reconhecendo que tinha se reunido com os ‘fazendeiros’ que seu primo Fontán Reyes lhe apresentou, e que os havia contratado para assaltar os agentes pagadores do município. As reuniões eram num luxuoso apartamento da rua Arenales.”
O que acontece no Uruguai é de interesse de quem quiser ler o livro ou ver o filme, mas a travessia só é possível graças à existência de um porto criminoso, controlado por um polonês:
“O polonês era o Conde Mitzky, que controlava a rede de contrabandistas e muambeiros do Rio da Prata; eles tinham sob controle os caras da alfândega e o pessoal da polícia da fronteira, que fazia vistas grossas nas travessias clandestinas para a outra margem.”
Máquinas narrativas – No Epílogo, Piglia conta que se deparou com a história em 1966, quando conheceu em um trem que ia para a Bolívia Blanca Galeano, esposa de um dos integrantes da quadrilha. Entre 1968 e 1969, realizou pesquisas e redigiu a primeira versão do romance, que acabou abandonada. Já na década de 90, uma mudança faz o autor se deparar com a caixa de anotações, recortes de jornal, pesquisas e o texto preliminar de “Dinheiro Queimado”:
“Os acontecimentos estavam agora tão distantes e tão obscuros que pareciam a recordação perdida de uma experiência vivida. Quase já os havia esquecido e eram novos e quase desconhecidos para mim passados mais de trinta anos. Essa distância me ajudou a trabalhar a história como se se tratasse do relato de um sonho.”
Esse relato da construção da obra revela o conceito de “máquinas narrativas”, que Piglia explora em entrevistas ou em textos de crítica. Tais máquinas são fontes de histórias com determinadas características. Ao aplicarmos esse conceito em “Dinheiro Queimado”, bem como em outras obras baseadas em fatos reais, vimos como essas não são escritas para nos relatar a verdade ou apontar os fatos. “Dinheiro Queimado” não é a reconstituição de um crime, é uma engrenagem de máquinas narrativas: a história da moça do trem, as notícias dos jornais, os relatos psiquiátricos sobre um dos criminosos, os autos do processo na 12ª Vara de Montevidéu, as atas dos interrogatórios da polícia de Buenos Aires e as gravações das escutas nos apartamentos usados pela quadrilha. Máquinas narrativas que só a literatura ou a história podem reunir.
Referência:
Ricardo Piglia. Dinheiro Queimado. São Paulo, Companhia das Letras, 1998.