Sexta, 19 Abril 2024

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Em Flávio Viegas Amoreira, isso se dá pela linguagem: “CHOVENOMAR desperdício estarmundo / CHOVENOMAR acontece / POEMASPONJA recolhos reunimentos / meus poros são olhos! Pontos focados / pés castos / costados dobradiços / jazz aqui poensia: ex-boçamento”. Lírico em “Do sereno que enche o Ganges” (2007) , Demarchi descreve prosaica e ironicamente mente a paisagem em alguns poemas de “Costa a Costa” (2012): “um porto é lugar de encanto para alguém cansado pelas atribulações da vida”. Nota uma garça que “vive no canal poluído e fétido de onde tira alimento”, vê na praia “objetos regurgitados e devolvidos pelo mar”, onde navios desovam contêineres e “com as ressacas brilham e deitam aos pés / chusmas de lixo e entulhos e moluscos e agudos”. Também está nos títulos: a 1ª, 2ª e a 3ª “Manhã no Hades”, “Vento do Diabo” (sobre o Vento Noroeste). Em “Engolidores de contêineres” descreve os navios como bestas:

imensas massas náuticas

os navios de perto impactam

a paisagem e a comem

num pedaço de essencial

 

remendos entintados de fome

na natureza morta da baía

mais pesados que a água, bóiam

vorazes engolidores de contêineres

interferências paquidérmicas

que deslizam pelos olhos e viajam

Voltei a tratar do par nostalgia/desolação para ir atrás de uma hipótese sobre os períodos da história do porto de Santos que cada grupo de poemas mimetiza. Apesar de terem o porto da nostalgia em sua enciclopédia (uns mais, outros menos), os versos e poemas acima registram um porto bem menos afetivo, talvez hostil à cidade e seus habitantes. As operações industriais das concessionárias promoveram nos anos 90 a aceleração da proibição do acesso ao cais, o que vem ocorrendo desde a chegada do contêiner nos anos 70. Hoje temos pouquíssimos acessos livres ao porto. Um pouco na Ponta da Praia, vendo navios passar e o ziguezague de barcas, práticos e balsas, nas quais ainda ganhamos a perspectiva de dentro do estuário para ver os navios atracados. O acesso ao resto nos é praticamente vedado.

Sobre o contêiner já se escreveu que sua entrada em operação reduziu drasticamente o tempo de uma operação, de dias para horas, fazendo com que um grande contingente formado pelas tripulações deixasse de circular pela cidade, seus bares, hotéis e restaurantes. Isso encerra uma das fontes para a Santos nostálgica, ligada às imagens da cidade portuária e do alvoroço cosmopolita. Sem contar que o porto das viagens marítimas foi perdendo espaço para as viagens de avião. Só sobraram as cargas. O capítulo final desta imagem pode ser visto, por exemplo, na pesquisa que Márcia Costa tem feito sobre a vida cultural na cidade entre os anos 50 e 60, enquanto Patrícia Galvão trabalhava como jornalista de Artes e Cultura em A Tribuna e participava da produção de eventos e espetáculos, quando a cidade ainda fazia parte das rotas internacionais. A própria Patrícia daqui partiu para o mundo e para aqui voltou ao Brasil Companheira intelectual e de vida, Márcia me mostrou um texto de Patrícia em que isso é o tema, a coluna Literatura de 14 de junho de 1959, escrita no prédio do jornal:

Como o cais começa logo ali, a dois quarteirões desta nossa rua General Câmara, e a nossa ilha, como todas as ilhas vive cercada de mar por todos os lados, a tentação da viagem é uma permanente. Lembrai-vos do poeta: “Ah, todo cais é uma saudade de pedra”.

Epílogo
Tanto as descrições quanto a hipótese são bem frágeis, talvez, mas buscam identificar alguns elementos para mais um veio de considerações sobre como as obras literárias descrevem a cidade de Santos e seu porto. Muitas das ideias, ainda que básicas, acabaram se solidificando com a leitura das entrevistas do teórico Luiz Costa Lima, que vem buscando em sua obra caracterizar a forma específica pela qual a literatura mimetiza a realidade e determinar o estatuto do ficcional (ou ao menos apontar que nossa sociedade historicamente nunca ligou muito para isso). Dois de seus livros, “História. Ficção. Literatura” (2006) e “Redemunho do horror” (2003). Longo caminho.

Referências
Rui Ribeiro Couto. Santos. In: João Christiano Maldonado (org.). Poesia de Santos. Santos, edição do autor, 1977.

Roldão Mendes Rosa. Poemas do não e da noite. Apresentação de Narciso de Andrade. São Paulo-Santos: Editora Hucitec, Prefeitura Municipal de Santos, 1992.

Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.

Madô Martins. Raízes. In: Doce Destino. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1999.

Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.

Alberto Martins. A História dos Ossos. São Paulo: Editora 34, 2004.

Flávio Viegas Amoreira. Maralto. Rio de Janeiro: 7Letras, 2002.

Flávio Viegas Amoreira. A Biblioteca Submergida. Rio de Janeiro: 7Letras, 2003.

Flávio Viegas Amoreira. Escorbuto – Cantos da Costa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.

Ademir Demarchi. Do sereno que enche o Ganges. In: Pirão de Sereia. Santos: Realejo Edições, 2012.

Ademir Demarchi. Costa a Costa. In: Pirão de Sereia. Santos: Realejo Edições, 2012.

Dau Bastos (org.). Luiz Costa Lima: uma obra em questão. Rio de Janeiro: Garamond, 2010.

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