Sábado, 20 Abril 2024

Em “O Brasil dos imigrantes no cais de Santos” (18/07), a coluna mostrava como o romance “Navios Iluminados” (1937) apreendia o espaço nacional devido à movimentação de seus principais personagens, todos migrantes. Desta vez, veremos qual era o contexto político-intelectual em que Ranulpho Prata escreveu sua principal obra.

 

Três obras marcam o momento da publicação de “Navios Iluminados” (1937): “Casa Grande e Senzala” (1933), de Gylberto Freire, “Evolução política do Brasil” (1933), de Caio Prado Júnior, e “Raízes do Brasil” (1936), de Sérgio Buarque de Holanda. Nelas fica a intenção de explicar o país. Nesse momento, intelectuais participam da vida nacional e chegam a tomar parte do corpo do Estado durante o governo Vargas, num movimento simultaneamente de cooptação, por parte do governo, e de oferta de conhecimento, por parte dos intelectuais. É criado o Ministério da Educação e são formadas a Universidade de São Paulo (1934), a Universidade do Distrito Federal (1935) e a Universidade do Brasil (1937, atual UFRJ).

 

A publicação de “Navios Iluminados” ocorre em meio ao movimento do romance proletário, cuja intenção era registrar a vida dos trabalhadores dos centros urbanos e industriais. “Parque Industrial”, de Patrícia Galvão, a Pagu, “Agonia na Noite” e “Capitães de Areia”, de Jorge Amado, e “A Escada Vermelha”, “A Revolução Melancólica” e “Chão”, de Oswald de Andrade, são algumas obras representativas do período.

 

Os artistas e intelectuais tratavam em suas obras das questões sociais que estavam na ordem do dia. Através da literatura proletária e do romance regionalista fazia-se a crítica dos valores da sociedade patriarcal e oligárquica identificada com o tempo passado. Interessava agora retratar a vida do homem comum das cidades e dos sertões.

 

“Navios Iluminados”, por sua vez, retrata o homem do sertão que veio para a cidade, enquanto suas obras anteriores, com algumas exceções, mostram personagens que se movem menos pelo território nacional. Temos o sertão de Lagarto (interior de Sergipe, cidade natal do autor) em “O Triunfo” (1918), primeira obra de Prata; o sul de Minas Gerais agrário de “Dentro da vida” (1922) e o Rio de Janeiro, em “O lírio na torrente” (1925), que marca a chegada da ficção de Prata nos grandes centros urbanos; seus personagens se movimentam entre a então capital federal e o interior de São Paulo. A obra acompanha com certo atraso a mudança do próprio autor de Salvador para o Rio, onde havia terminado seus estudos de medicina em 1920.

 

São nove anos até a obra seguinte, uma série de estudos sobre o cangaço com o nome de “Lampião” (1934). Escrevendo pela primeira vez no gênero “estudos”, Prata mergulha na denúncia social. Na primeira linha da introdução, ele identifica a obra como um “documentário fiel dos crimes de Virgolino Ferreira da Silva”, um “eco do clamor e do apello lançados pelas populações desditosas”. A intenção de denúncia se mistura à esperança de ser percebido pelas autoridades: “Clamor que deseja ser ouvido pela consciência publica brasileira e apello dirigido aos responsaveis pelos destinos do paiz”.

 

Esse movimento do campo à cidade na evolução da obra de Ranulpho Prata deixa para trás conceitos como “autor regionalista” ou “sertanista”. Em “Navios Iluminados”, o autor enfim consegue unir todos os espaços regionais de seus trabalhos anteriores fazendo desta obra que tem o bairro portuário do Macuco como cenário uma representação de todo o país. Assim, é um espaço de interligação nacional como o porto de Santos que permite ao autor relacionar os demais espaços da nação e, assim, deixar a escala local dos acontecimentos em direção ao que o professor Nicolau Sevcenko chamou de “a dimensão histórica e espacial da nação, do Estado, do território, da ordem econômica internacional, do cosmopolitismo, etc.”.

 

No ensaio “Antigos modernistas”, Francisco Foot Hardman avalia que o deslocamento de parte da população nacional causada pela necessidade de sobrevivência faz parte do que chama de “drama da modernidade”, constituído pelo choque que interrompe o fluxo da experiência tradicional das pessoas e na destruição sistemática de seus espaços e temporalidades.

Prata, nascido no sertão (saiba melhor aqui), apresenta-se como porta-voz da “angustia de milhares de seres humildes”. Ele repete por toda a introdução de “Lampião” se refere aos sertanejos na primeira pessoa do plural: “a mão que tracejou este livro é a de um filho dos sertões”. Em “Navios Iluminados”, o autor levou conseguiu reunir todas estas questões no registro literário.

 

Referências:

 

Sobre a intelectualidade brasileira da primeira metade do século XX:

 

HARDMAN, Francisco Foot. “Antigos modernistas”. In: NOVAES, Adauto (org). Tempo e História. Companhia das Letras, s/d.

 

SEVCENKO, Nicolau. Literatura como missão. Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. 2ª Edição, revista e ampliada. São Paulo. Companhia das Letras, 2003.

 

Anos de incerteza (1930-1937). Os intelectuais e o Estado”. Centro de Pesquisa e Documentação da História Contemporânea do Brasil da Fundação Getúlio Vargas. Disponível em http://www.cpdoc.fgv.br/nav_historia/htm/anos30-37/ev_intest001.htm

 

As obras de Ranulpho Prata estão disponíveis no acervo da biblioteca da Sociedade Humanitária dos Empregados do Comércio de Santos.

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