Apresentado em coluna anterior (“Duas visões da natureza do litoral”), “Cais”, livro de poemas de Alberto Martins lançado em 2002, volta ao espaço para que seja apresentada a relação que os poemas mantêm com as gravuras que ilustram o livro, feitas pelo próprio autor.
A movimentação do cais de Santos fornece a maior parte das imagens transformadas em poesia. Bem no meio do livro, por exemplo, há uma seqüência de gravuras que mostra a aproximação de uma carga enquanto as páginas são viradas. Em entrevista realizada pelo colunista para 'O Reformador', jornal da Biblioteca Municipal de Cubatão, Martins comentou a relação entre suas gravuras e poemas: “Planejei a seqüência de imagens como algo em movimento, como um cinema. Quando fui articulando os poemas e as gravuras eu queria que os dois se relacionassem de maneira não besta, ilustrativa, mas dizendo coisas diferentes, expondo ângulos diferentes, sobre uma experiência comum”.
A materialidade sugerida pelas gravuras aparece também em passagens como esta de “Do alto de um guindaste”, sétima parte da série “Em torno da cidade”:
“entre bandeiras
de diferentes donos
e as grossas placas
de aço do abandono”
Essa primazia da matéria e da atuação do tempo sobre ela leva a uma sensação de desintegração das formas tomadas pela neblina, corroídas pela ferrugem ou embaçadas pelo calor úmido. A descrição de tudo isso só cabe em um idioma próprio, a “língua-mangue”, língua-mãe de uma baixada feita de terra, de água, de mar e de lama. Os poemas de “Cais” demonstram também a psicologia de uma cidade provisória, de comércio, de transbordo, de migrantes e viajantes, de oportunidades e porões, de idas e vindas.
Alberto Martins também faz poesia dos encontros históricos. Surgem nas páginas de “Cais” o cônsul inglês Richard Burton e as impressões de viajantes como Hans Staden, Rudyard Kipling e Jean de Léry. Nos poemas, o porto nada mais é que outra paisagem ainda não dominada pelo homem. Lugar de transbordo de sotaques, de ataques de transatlânticos, em que as coisas “demoram algum tempo antes de partir”, onde as dragas revolvem o lodo de um “sórdido estuário” e onde a morte pode surgir na simples travessia cotidiana entre Santos e Guarujá, como ilustra o poema “Barra”:
“Por aqui ainda se morre
de simples destempero
basta ignorar as lajes
o vento
basta romper a barra
em hora estreita:
vais pescar em águas turvas
ao som de nenhuma sereia.”
Confira a íntegra da entrevista realizada com o autor:
Já houve casos de balsas que trombaram na “hora estreita” entre Santos e Guarujá?
Alberto Martins - Fiquei muito contente com a referência ao fato de que as balsas realmente trombaram na travessia, aparentemente tão simples, entre Santos e Guarujá. Não pela trombada e o dano que isso traz, evidentemente; mas sim porque isso chama a atenção para o fato de que as passagens difíceis, as horas estreitas, realmente existem e estão muito perto de nós.
Alguns trabalham com essas passagens de maneira concreta, como os pilotos de barcos, por exemplo, outros de maneira simbólica ou figurada. Em todo caso, não é preciso buscar isso do outro lado do mundo: elas estão muito próximas de nós, enraizadas na experiência cotidiana, senão individual, certamente comunitária. As “barras” sinalizam essas passagens difíceis. Recentemente estive em Cananéia, cuja barra é reconhecidamente dura. É a saída da baía de Trepandé para o mar aberto, entre a ponta sul da Ilha Comprida e a ilha do Cardoso. Foi comum conversar com gente de lá e ouvir “perdi um tio nessa barra”; “meu primo morreu quando a embarcação virou na barra” etc etc.
Li também em algum lugar um fato que me marcou. Não sei se do ponto de vista histórico é inteiramente verídico, ainda me falta comprovar, mas vá lá. Li que Alexandre o Grande perdeu a batalha contra Dario porque esperava reforços que deviam vir por mar. Ele combinara com seus comandados que estes deviam esperá-lo após a barra do rio “x”. Mas distinguir uma boca de rio, uma barra, na linha horizontal do continente, estando no mar, nem sempre é tarefa fácil. O comandante passou do rio sem perceber e chegou atrasado para o confronto. Resultado: Alexandre foi pro bebeléu.
Já os pilotos portugueses eram muito bons em discernir as entradas de rios. Os pontos mais importantes nos mapas do litoral eram justamente essas sinalizações: os baixios, os bancos de areia, os canais dentro da barra, as possíveis pedras. Para quem está em Santos, São Vicente ou Cubatão, sabemos que essas coisas não são meros detalhes, mas foram elas que tornaram possível a ocupação do litoral, apropriação do espaço em que habitamos, tanto do ponto de vista prático, econômico, como do ponto de vista da estética: da sensibilidade que podemos desenvolver a partir de uma determinada paisagem.
Outra “passagem difícil” que está no livro, equivalente à barra marítima, é a Serra do Mar. Novamente: quem vive em Santos ou Cubatão sabe que subir a Serra com neblina pode ser uma experiência decisiva. É literalmente uma “travessia”, no sentido que Guimarães Rosa dava ao termo. Um percurso tanto físico quanto existencial. Para colher um exemplo na minha própria família: meu avô e meu pai tiveram, em alturas diferentes da vida, acidentes na Serra do Mar que marcariam suas vidas para sempre. É uma coisa aparentemente corriqueira, não é?, subir, descer a serra etc. No entanto, pode ser fatal. E pode ser belíssimo também!
E a África, referência constante no livro, está muito longe do porto?
Ao longo do processo de composição dos poemas é que fui me dando conta de que havia várias referências geográficas espalhadas: Serra do Mar, Juréia, Santos, cordilheira, Atol das Rocas. Penso que isso desenha um mapa, um lugar que é ocupado pelo livro. Esse lugar é a América do Sul, mais precisamente, o Atlântico Sul. É uma questão de geopolítica.
Qual a experiência que de fato me interessa? É a experiência desse lugar “geográfico”. A África vem completar o quadro. Ela aparece aí como uma aspiração (“quantas quilhas.”), um lugar para onde tendemos. Ela ajuda a desenhar esse espaço. Há um livro do historiador Luis Felipe de Alencastro (“O Trato dos Viventes”) que, logo de cara, diz: “A formação do Brasil se deu em grande parte fora do Brasil”. Se deu na África, ou melhor, nesse trânsito, entre a África e o Brasil, que é o Atlântico. Mas ainda preciso entender um pouco mais isso: o que é que a África significa e como pode se relacionar conosco.
Os poemas de Cais parecem narrar uma paisagem em preto e branco.
É curioso você mencionar que as imagens que o livro sugere são em preto e branco e cinza. De fato, a gravura em madeira opera por contrastes radicais e gosto disso: preto/branco; cheio/vazio. Não tem nuances, meios tons etc. No entanto, a experiência dessa paisagem também pede essas nuances? Toda essa experiência da "neblina" que acabo de mencionar. Acho bom que a expressão literária possa operar não só com os contrastes radicais da xilogravura, mas construir outras passagens, dar voz a outras gradações de seres, sentimentos e percepções.
Em 2002 tivemos também o lançamento de “Barcelona Brasileira”, romance de Adelto Gonçalves cujo cenário é o porto da década de 20 do século passado. Gonçalves também é o autor de “Vira-latas da madrugada”, cuja história se desenvolve nos anos 60. Além disso, temos “Navios Iluminados”, de Ranulpho Prata, “Cais de Santos” e as poesias de Roldão Mendes Rosa e até de Pablo Neruda sobre o porto de Santos, além de estudos acadêmicos como “Ventos do Mar: trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana” e “A carga e a culpa”. Pode-se
dizer que existe literatura portuária? Se sim, quais suas características e sua contribuição às letras? Como você se encaixa nesta tradição?
Conheço o "Vira-latas da madrugada" e não faz muito temo mencionei o livro a uma amiga que não o conhecia. O Roldão tem realmente poemas muito bonitos: uma imagem que guardei foi a do "anonimato das pedras do cais". Já li várias outras referências sobre o Porto de Santos: Levy Strauss, Elizabeth Bishop etc etc, mas não a do Neruda. (Em sua resposta, Martins tem a idéia de reunir essas passagens sobre o cais de Santos em livro). Daria um livro lindo e ajudaria a despertar a consciência do "que somos e a partir de que lugar atuamos".