Nas últimas colunas apresentei algumas leituras de autores que se utilizam dos relatos da memória para tecer poemas, narrativas, contos e romances e como esta literatura (de natureza ficcional em grande parte) dão perspectiva para a reflexão sobre a experiência recente de tragédias sociais como Vila Socó (Marcelo Ariel), das ditaduras latino-americanas (Roberto Bolaño e Rodrigo Naranjo) ou, duas gerações antes, o destino forçado de emigrantes que se afastavam ou fugiam da ascensão do nazismo (W.G. Sebald).
I - A experiência e a ficção
Os acontecimentos históricos acima, de grande trauma, propiciaram uma profusão de relatos, geralmente de sobreviventes (Vila Socó é um caso discutível sobre a quantidade de relatos), isto é, de pessoas que entraram na máquina do terror e de alguma forma saíram dela. Suas histórias compõem a primeira leva de livros, marcada pelo trauma da experiência e a memória que resgata estes fatos.
Nas últimas três décadas (1990-2010), a literatura desses autores (poderia citar também o português Gonçalo Tavares) promove um novo ciclo de reflexão sobre fatos como o terror e o autoritarismo de Estado que assolou o século XX, breve e sob estado de exceção. Eles usam o testemunho como matéria-prima: o narrador vê um incêndio por dentro (Ariel), a primeira pessoa torna-se inventada (Bolaño e a história de um padre que deu aulas de Marxismo a Pinochet) ou alguém que simplesmente lembra das histórias que ouviu (Sebald e a sobreposição de tempos: o dos fatos, o do relato dos fatos e o da lembrança do relato dos fatos). A experiência não é mais direta, a memória pessoal dá lugar à mediação pela distância, pela invenção ficcional, pela elaboração poética.
Colmeia de ossos em ruínas maias
Esse jogo de espelhos, de idas e vindas, desde o momento da experiência ao presente da narração, contribui para que a experiência, (a emigração forçada, as ditaduras, o incêndio), além do trauma e sua necessária cicatrização, possa se tornar ela também fonte de reflexão e conhecimento.
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