As narrativas de testemunho em primeira pessoa – como “Memórias do cárcere” (Graciliano Ramos) ou “O que é isso, companheiro?” (Fernando Gabeira) – são entranhadas pela memória dos fatos vividos pelo narrador, são verdadeiros documentos históricos e na Argentina têm até valor como prova testemunhal nos julgamentos de torturadores.
Mas há um paradoxo na literatura de testemunho que aprendi lendo a ensaísta argentina Beatriz Sarlo. Por ser realista, a literatura de testemunho só dá conta da experiência de quem sobreviveu ao cárcere das ditaduras, fonte da memória que constrói o relato. Ou de outra forma: mortos e desaparecidos nada narram.
Já vão mais de vinte anos desde que as ditaduras militares do Cone Sul foram derrubadas. Por causa disso, Beatriz Sarlo conclui seu livro “Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva” (2007) afirmando que as narrativas sobre os dramas da ditadura devem agora avançar para além da experiência e aumentar a fabulação – isto é, a criação de ficções – sobre os episódios das ditaduras. Ela explica o motivo dessa guinada melhor do que eu:
A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.
I Vila SocóA primeira vez que citei a afirmação acima foi para ler o poema “Caranguejos aplaudem Nagasaki”, de Marcelo Ariel [foto], sobre a tragédia de Vila Socó (cujo incêndio de 24 de fevereiro de 1984 completou na semana passada mais um aniversário). Publicado em 2008 no livro “Tratado dos anjos afogados”, seus versos formam imagens poéticas que nos levam diretamente para o incêndio, onde nenhum sobrevivente teria chegado. Centenas de vítimas sem nome (os levantamento são inconclusivos sobre o número total de mortos) têm em sua obra um monumento. O ensaio sobre o poema, “Vila Socó e a literatura” está aqui e, abaixo, um trecho significativo do poema sobre a questão de Sarlo:
(Vila Socó)
Corpos em chamas se atiram na lama
mulheres e crianças primeiro
caranguejos aplaudem Nagasaki
bebê de oito meses é defumado
enquanto Beatriz
agora entende o poema derradeiro
Beatriz mãe solteira antes de morrer
deu um inútil pontapé na porta.
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