Terça, 23 Abril 2024

Quase lá no meio do “Grande Sertão: Veredas” (pg. 116 da edição comemorativa da Nova Fronteira), Riobaldo, a voz que ouvimos ao ler o clássico romance de João Guimarães Rosa que é sempre direcionada a um interlocutor a quem sempre se refere. Nesse trecho lembra de quando era menino moço e foi com a mãe ao porto do Rio-de-Janeiro, Bahia abaixo, já perto do Santuário do Santo Senhor Bom-Jesus da Lapa, onde o jovem de 14 anos, recuperado de uma enfermidade, pagaria promessa feita pela mãe ao pedir esmola na praça para encomendar uma missa. Assim, a coluna passa por mais uma descrição de cena portuária, ainda que de um porto humilde, na sublime prosa de Rosa:

Foi um fato que se deu, um dia, se abriu. O primeiro. Depois o senhor verá por quê, me devolvendo minha razão.

 

Se deu há tanto, faz tanto, imagine: eu devia de estar com uns quatorze anos, se. Tínhamos vindo para aqui – circunstância de cinco léguas – minha mãe e eu. No porto do Rio-de-Janeiro nosso, o senhor viu. Hoje, lá é o porto do seo Joãozinho, o negociante. Porto, lá como quem diz, porque outro nome não há. Assim sendo, verdade, que se chama, no sertão: é uma beira de barranco, com uma venda, uma casa, um curral e um paiol de depósito. Cereais. Tinha até um pé de roseira. Rosmes!... Depois o senhor vá, verá. Pois, naquela ocasião, já era quase do jeito. O de-Janeiro, dali abaixo meia-légua, entra no São Francisco, bem reto ele vai, formam uma esquadria. Quem carece, passa o de-Janeiro em canoa – ele é estreito, não estende de largura as trinta braças. Quem quer bandear a cômodo o São Francisco, também principia ali a viagem. O porto tem de ser naquele ponto, mais alto, onde não dá febre de maresia. A descida do barranco é indo por a-pique, melhoramento não se pode pôr, porque a cheia vem e tudo escavaca. O são Francisco represa o de-Janeiro, alto em grosso, às vezes já em suas primeiras águas de novembro. Dezembro dando, é certo. Todo o tempo, as canoas ficam esperando, com as correntes presas nas raiz descoberta dum pau-d’óleo, que tem. Tinha também umas duas ou três gameleiras, de outrora, tanto recordo. Dá dó, ver as pessoas descerem na lama aquele barranco, carregando sacos pesados, muita vez. A vida aqui é muito repagada, o senhor concorde. Outro, meu tempo, então, o que é que não havia de ser?

Nas histórias, os portos representam a fronteira, a mudança, deles partem as aventuras, as grandes viagens e a melancolia da despedida. Em “Grande Sertão: Veredas”, naquele dia em que o menino vai esmolar, é onde ocorre um episódio significativo de todo o relato de Riobaldo, o episódio em que vê pela primeira vez Diadorim.

Referência
João Guimarães Rosa. Grande Sertão: Veredas. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2001.

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