1 Literatura
Notei uma vez no poema “Santos Revisitado (1292-1967)” um testemunho sobre as mudanças urbanas em Santos no período inscrito em seu título. Pablo Neruda registra em seus versos a transformação da paisagem urbana. Em seguida, minha tradução de sua quinta e última parte:
V
Compreendo que escutei a esfera colocando o ouvido em
um ponto
e às vezes ouço apenas um rumor de marés ou abelhas:
perdão se não pude e a tempo escutar essa locomotiva
ou o estrondo espacial da nave que estoura em seu oco de
aço.
e soube assoviando entre constelações e temperaturas:
perdoem algum dia se não vi o crescimento dos edifícios
porque estava olhando uma árvore crescer, perdão.
Tratarei de cumprir com aquelas cidades que fugiram de minha
alma
e foram armados de duras paredes, altivos elevadores
deixando-me fora na chuva, esquecido nos anos ausentes,
saudando este grande esplendor sem desejo nem inveja:
Neruda se justifica por não ver o progresso. A repetição do bordão “perdão” (duas vezes no singular e uma vez implorando um perdão coletivo) marca o início e o fim da enumeração de duas imagens de elaboração poética de fatos do crescimento urbano de Santos: a ferrovia e os prédios levantados ao longo da orla entre as décadas de 50 e 60. Se Neruda é sincero ou um irônico nostálgico, aí é questão de longa discussão, além de minha pretensão ensaística.As cidades que fugiram da alma é outra imagem poética da marca afetiva destes eventos. “Duras paredes”, “fora na chuva”, “esquecido nos anos ausentes” completam o clima nostálgico. É exatamente neste clima melancólico que faz fundações o edifício poético que reflete esteticamente o “crescimento dos edifícios”, tornando-o impactante e perene em nossos olhos (o “instante quase-já” do qual fala Alberto Martins).
2 História
Na primeira parte do poema, Neruda registra poeticamente o drama social (o sangue dos homens negros mortos para continuar suando). Daqui dou um salto no tempo e trago um contemporâneo que poetiza outro drama, o urbano. Não vou equiparar qualidades literárias, que não sou louco. O objetivo desta segunda seção é mostrar como o “crescimento dos edifícios” surge em outra forma poética, escrita e publicada entre 20 e 30 anos após o poema de Neruda. O extrato histórico da poesia do chileno ocorre durante a Guerra Fria, em meio às tensões entre capitalismo e comunismo, ambos ainda em busca do progresso que nos fez esquecer olhar as árvores.
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