Sábado, 28 Dezembro 2024

Semana passada, revisitei o poema Caranguejos aplaudem Nagasaki, de Marcelo Ariel, sobre a tragédia social de Vila Socó, que dizimou este bairro de Cubatão em 24 de fevereiro de 1984. Ele está no livro Tratado dos anjos afogados (2008). A ideia foi dizer que a arte, no caso a obra de Ariel, permite que se pense sobre as coisas além da experiência, “como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo”, como disse a ensaísta argentina Beatriz Sarlo. Hoje “trevisito” a ideia a escrever sobre outro componente histórico do tema de Caranguejos aplaudem Nagasaki.

I
Vila Socó: Libertada é o nome de toda a primeira seção do Tratado. São 26 poemas, começando por O Espantalho, o dos caranguejos e ainda outros como Praça Independência-Santos, Jardim Costa e Silva-Cubatão, Carandiru Geral e Em Cubatão, que formam uma geografia literária cujo epicentro é Vila Socó; ou ainda Sonho que sou João Antônio sonhando que é Fernando Pessoa, A cosmicidade de tudo, Rimbaud Rock, que fazem de Vila Socó um centro de emissão de pensamento metafísico, neles já não se limita apenas a acontecimentos específicos. Um exemplo de título que reúne as duas órbitas é o do poema Com Miles Davis na Serra do Mar.

II
Se o Tratado fosse uma ópera ou um concerto, Vila Socó: Libertada seria sua abertura, demarcando o espaço da ação. Metafísica no caso das partes III, Oceano Congelado; IV, Esse invisível fantasma; e V, Autobiografia total e outros poemas; e territorial em II, Scherzo-Rajada; e VI, Me enterrem com a minha AR-15 (Scherzo-Rajada 2), que encerra o poemário. 

As duas categorias acima – poemas geográficos e poemas metafísicos – estão formuladas em linhas gerais a partir dos títulos, como se víssemos uma floresta. Não é o que ocorre na leitura corrida dos poemas, em que a polifonia poética de Ariel surge desde O Espantalho, dedicado para crianças; polifonia bem caracterizada no poema Em Cubatão:   

Em Cubatão

num céu que não nos protege
contemplando a procissão dos falsos replicantes
sendo sugada pela interzona industrial
cercada de favelas
pétalas dessa flor do mal
ouvindo o sino de fogo de Rimabud
(que aqui seria só mais um desempregado carregando o
pólen da morte
flor enorme e cósmica
desse jardim das trevas
onde os nomes das cidades ou dos Poetas
serão nada)
Um sol negro irradia esse silêncio atômico
Voltando ao poema
ponto final do ser,
a besta pára
na Praça Euclides Figueiredo, desço
entro na Rua Camões e sigo pela
Machado de Assis.
Amém.

Aqui, a polifonia no poema: o primeiro verso vem do filme O céu que nos protege (1990), de Bernardo Bertolucci, os replicantes do segundo verso são os andróides de outro filme, Blade Runner (1982), de Ridley Scott. A interzona industrial cercada de favelas dos terceiro e quarto versos é a realidade geográfica. Os três versos seguintes remetem a Rimbaud (seria um desempregado em Cubatão), seguidos por uma série de imagens. No final, o verso-expressão “ponto final do ser” traz o poema para a perspectiva metafísica do narrador-passageiro de ônibus que transita entre as ruas – e as literaturas de – Camões e Machado de Assis.

Referência
Marcelo Ariel. Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.

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