A tragédia é, antes de tudo, um gênero literário. A frase é bacana, mas pode obter um tom blasé e causar em alguém a impressão de que a literatura possa ser maior do que a vida das pessoas ou, por outro lado, que é algo fora da vida. Busco me afastar desta polêmica.
A oração que abre este texto é verdadeira para mim por algo mais corriqueiro: fazer parte da vida é exatamente o que faz a literatura ser uma das principais fontes para a formação da própria ideia de uma história de desgraças. Por não precisar de provas, a ficção costuma atingir locais da compreensão humana que a mais contundente das evidências não alcança. Lógico que isso não resolve as coisas simplesmente, mas nos permite um mundo de compreensão e não apenas de experiência.
Sobre isso já citei algumas vezes a ensaísta argentina Beatriz Sarlo, ao concluir seu livro sobre as relações entre ficção, relatos de testemunho e a escrita da História. Ela será importante hoje outra vez:
A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.
Uma destas citações usei em um texto crítico sobre o livro Tratado dos anjos afogados (2008), de Marcelo Ariel. Pensava especificamente no poema Caranguejos aplaudem Nagasaki, em que Ariel se apodera do pesadelo de Vila Socó – favela sobre o mangue que queimou até as cinzas em um Cubatão de 24 de fevereiro de 1984, quando o poeta era um adolescente de 15 para 16 anos. Aqui vai um trecho em que faz isto com maestria:
Vila Socó
estacionou na História
ao lado de Pompéia, Joelma e Andre Doria
Pensando nisso
ergo neste poema um memorial
para nós mesmos
vítimas vivas do tempo
onde se movimenta a morte se espalhando na paisagem
como o gás
que também incendeia o sol
(bomba de extensão infinita)
Beatriz sentou perto da porta e ficou olhando o fogo.
Até que invade a cena a luz suave de um outro sol frio
Fim de jogo.
Marcelo Ariel lê durante a Virada Caiçara (outubro/2010)
Estes versos são imensos, de uma – na falta de melhor termo – expressão ética, isto é, na qual se sabem poesia sobretudo, e por isso mesmo carrega significados: “estacionar na História”, “Pompéia”, erguer, “poema”, “memorial”, “vítimas vivas do tempo”, “morte se espalhando como gás”, um incêndio, o “sol”, que é uma “bomba”, sem contar Nagasaki do título; e não é só, Beatriz (mãe solteira da favela apresentada nos versos iniciais) retorna ao texto e não podemos deixar de pensar na Beatriz e no inferno da Divina Comédia de Dante Alighieri (ainda que não tenhamos lido o livro, a imagem que temos hoje do inferno é uma invenção do autor – mais uma prova de que a literatura é parte da vida, não à parte da vida); e depois a morte: luz suave, sol frio e “Fim de jogo”. Fica a observação de que Dante Alighieri também inventou a língua italiana, outra prova a favor da literatura.
As palavras e expressões do poema destacadas acima não são informativas, não denunciam nem louvam as autoridades, não falam da situação insalubre do local, nem das condições atuais, competências do jornalismo e das ciências sociais que a literatura às vezes exerce ou é cobrada a ter. Mas não, o que estas palavras fazem é mais nobre, é se apoderar do pesadelo.
Não se sabe exatamente o número final de mortos em Vila Socó. Dizem que é impossível saber porque presume-se que famílias inteiras morreram sem que sobrasse alguém para reclamar seus mortos. Os que morreram não nos deixaram relatos, infelizmente nunca os conheceremos, não poderemos fazer filmes deles baseados em fatos reais. Mais do que exatidão, nessas horas precisamos é de um poeta para louvá-los. E acredito que pelas palavras de Ariel irão permanecer.
Pois a literatura faz parte da vida.
Referências:
Marcelo Ariel. Caranguejos aplaudem Nagasaki. In: Tratado dos anjos afogados. Caraguatatuba: LetraSelvagem, 2008.