Na sexta-feira do dia 28, após um passeio de escuna, recebi da jornalista e escritora Madô Martins um exemplar de Doce Destino (1999) e seus poemas. Na ocasião, havia acabado de tomar parte em um espetáculo navegante concebido a partir de alguns poemas que navegam aqui pelo Porto Literário já há alguns anos. Madô de indicou um poema que ainda não fazia parte de minha biblioteca poética-portuária, Raízes:
Moro numa cidade
com sete canais
que garças sobrevoam.
Nessas veias abertas
corre o mar.
Moro numa ilha,
que é também um porto,
Boiando no Atlântico.
Moro no Sul
e jamais migro.
Procuro mensagens em garrafas,
na areia da praia,
mas só encontro conchas e maresia.
Não trato aqui apenas de qualidade estética, sempre procuro esclarecer: Porto Literário não é um espaço de crítica literária, é uma coluna em que busca traçar relações entre a identidade histórica de Santos e sua produção ficcional e poética, tanto a realizada aqui quanto a que tem o porto e a cidade como cenários. E, para isso, o poema de Madô Martins se mostra um compêndio, tanto da tradição de Roldão Mendes Rosa, Rui Ribeiro Couto e Narciso de Andrade, quanto da produção mais atual de Alberto Martins (seu livro Cais é de 2002) ou Flávio Viegas Amoreira (Escorbuto – Cantos da Costa é de 2005).
Imagem: Edu Marin - www.edumarin.com.br
O título nos leva diretamente à sensação de pertencimento e a primeira estrofe revela a natureza de pertencer a uma cidade cercada e cortada pela água do mar. A segunda estrofe idêntica a ilha ao porto e lhe dá sua dimensão (“boiando no Atlântico”).
Os dois primeiros versos do trecho final (“Moro no Sul / e jamais migro.”) retoma o tema da nostalgia portuária, dos poetas que testemunham os navios partindo, mas que não partem em nenhum, que conhecemos de Narciso (“Com tanto navio para partir / minha saudade não sabe onde embarcar”) e Roldão (“Por que / este amor ao cais / se o que espero não viaja?”).
O terceiro verso e quarto versos (“Procuro mensagens em garrafas, / na areia da praia”), porém, sugerem uma imagem romântica que acaba sendo desmentida no verso final (“mas só encontro conchas e maresia”). O “só encontro” aponta para outro lado, indica um porto menos imponente e mais precário – ideia reforçada até pelo uso do “só” no lugar de “somente”.
A essa desolação se dedicariam um pouco depois as poéticas – no mais bastante diferentes – de Martins (“e o casco? / É úmido. Está coberto / de cracas e a ferrugem / que rói as chapas / rói a carga”) e Amoreira, cujo título “Escorbuto” remete diretamente à precariedade.
O poema de Madô funciona e ganha força poética aí, nessa pequena operação, que registra a mudança de uma sensibilidade em relação ao porto, que talvez seja a da própria cidade com o cais, que passa de uma cor nostálgica para um tom precário.
Pós escrito
Decidi escrever sobre o poema de Madô na primeira lida, no dia 28, mas já tinha planejado outra coisa, que complementava a coluna anterior. O texto ficou para hoje. O problema é que ele saiu dois dias após a própria autora, em sua crônica de domingo em A Tribuna, ter tecido comentários à Rota Literária, a tal da apresentação de que participei na escuna. O aparecimento dos dois textos poderia parecer troca de favores, grande mal das letras, mas não poderia deixar de escrever sobre o poema por causa disso. Paciência.
Referências
Madô Martins. Raízes. In: Doce Destino. São Paulo: Massao Ohno Editor, 1999.
Narciso de Andrade. Poesia sempre. Santos: Editora Unisanta, 2006.
Roldão Mendes Rosa. Poemas do não e da noite. Apresentação de Narciso de Andrade. São Paulo-Santos: Editora Hucitec, Prefeitura Municipal de Santos, 1992.
Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.
Flávio Viegas Amoreira. Escorbuto – Cantos da Costa. Rio de Janeiro: 7Letras, 2005.