A ligação estratégica entre o Porto de Santos e o centro econômico em São Paulo é uma das formas aplicadas pelas ciências sociais para demonstrar o desenvolvimento destas duas cidades.
A expressão física desse sistema na era industrial era a ferrovia, inaugurada em 16 de fevereiro de 1867, que, assim como as tropas de mulas da era colonial e do primeiro reinado, promove a comunicação entre o litoral e o planalto ao vencer a Serra do Mar, cuja metáfora A Muralha é um de seus epítetos mais conhecidos (se avançarmos, notamos que o eixo se estende até Campinas, pólo produtor).
No último domingo, o Caderno 2 do Estadão e o Mais! da Folha trazem indícios de como o binômio físico e social Santos-São Paulo configurou as linhas da História. Na folha, Tai Hsuan-an, professor de design a arquitetura na Universidade Católica de Goiás, em uma entrevista dada a Ernane Guimarães Neto, fala de sua chegada ao Brasil:
Desembarquei com meus pais e três irmãos em Santos em 1968, como imigrantes. Junto com a família, já trabalhamos, por um ano, numa fazenda do interior de São Paulo, desbravando uma floresta para plantação de arroz.
Ficamos mais um ano em outra fazenda, dessa vez plantando café, no Paraná.
Além disso, nada mais há sobre o porto em duas colunas, mas ele está aí, dando início à história. Vemos nesse primeiro parágrafo como a cidade litorânea, ponto inicial de ocupação, carrega a herança de ter iniciado a expansão do eixo formado também pelo centro distribuidor e a fazenda. É característico que essa resposta satisfaz a primeira pergunta do repórter: “O sr. pode contar um pouco sobre sua própria história como imigrante?”.
Por contaminação histórico-narrativa, o porto inicia também o relato do viajante. Numa outra chave, o simbolismo do lugar de chegada acaba fixado também pela poesia e pelas narrativas de ficção, daí a coincidência de dois poemas com o nome Chegada em Santos, um de Blaise Cendrars e outro de Elizabeth Bishop, sem contar o bem próximo Santos Revisitado de Pablo Neruda (ver Três poemas chegam no porto de Santos). Na ficção, esse simbolismo é renovado na escrita contemporânea por autores como Flávio Viegas Amoreira (Maralto, A Biblioteca Submergida, Escorbuto – cantos da costa, Os contornos da Serra são adeuses ao cais) e Alberto Martins (Cais, História dos ossos).
A entrevista com Tai Hsuan-an está ao lado de outra com outro professor imigrante, o compatriota David Shiy, cientista social e professor de línguas orientais da USP. O material das duas entrevistas acompanha o assunto de capa do caderno: o preconceito no Brasil contra japoneses, Amarelo Mangá, uma reportagem de Matinas Suzuki Jr., que está ao lado ainda de uma entrevista com Maria Luiza Tucci Carneiro, também professora da USP e diretora do Laboratório de Estudos sobre Etnicidade, Racismo e Discriminação (Leer), sobre as pesquisas sobre anti-semitismo, das quais uma parte ela organizou no volume lançado em São Paulo no dia 13, O Anti-Semitismo nas Américas.
Assim, além de um parágrafo em duas colunas, a menção ao porto de Santos é uma ilha num mar de 4 páginas sobre a adaptação (e perseguição) de imigrantes no Brasil, mar que a 2 páginas dali, já na matéria sobre os japoneses, envolve outra ilha sobre a cidade portuária, um pouco maior, mas ainda pequena, de dois parágrafos, outro indício do simbolismo da porta de entrada. Ali é registrada a expulsão dos imigrantes do litoral por causa da possibilidade de espionagem para os países do Eixo, inimigos do Brasil durante a Segunda Guerra.
Em 10 de julho de 1943, sem aviso prévio, cerca de 10 mil “súditos do Eixo” (90% eram japoneses) foram obrigados a abandonar Santos em poucas horas, deixando todos os seus bens para trás.
Em 3 de maio de 1944, o delegado-chefe do serviço de salvo-condutos, José Antonio de Oliveira, nega pedido de Miya Tekeuti, que estava em São Paulo e queria voltar a residir na Baixada Santista para ficar perto dos sete filhos, o menor deles com 12 anos.
O texto acima sugere de novo a contraposição litoral e planalto por meio do nível de facilidade de espionar entre no ponto das trocas internacionais (comunicação com o mar e com os submarinos inimigos) e o ponto de distribuição dos produtos e da riqueza (controle e concentração do território).
O terceiro indício desta presença do porto na conformação da cidade de São Paulo pôde ser lido no mesmo dia no Caderno 2 do Estadão numa resenha de Leonardo Trevisan sobre A Aparição do Demônio na Fábrica, livro do sociólogo José de Souza Martins, outro professor da USP, sobre como a análise da arquitetura de fábricas, estações de trem e de cidades pode contar uma história dos medos sociais, no caso os provocados pela aceleração da vida causada pela modernidade e pela mecanização que torna o humano supérfluo. A origem do livro, repete o resenhista, está no porto e em sua ligação com o centro distribuidor:
O ponto de partida foi o fim, na década de 1860, da “lenta” São Paulo, quando uma ferrovia, saindo do porto de Santos, “inundou o planalto” com outra noção de tempo, disseminando uma nova mentalidade, a da pressa, construída pela possibilidade de estar “no mesmo dia em dois lugares, antes separados por dias de cavalgada”. No fim dos trilhos estava o mar, o caminho da Europa. Martins registra que a partir da ferrovia, em São Paulo, o tempo passou a ser regulado “pelo custo e pelo lucro”. O sentido da vida mudou para o paulista: “o homem deixou de ser o condutor da tropa para ser conduzido como tropa”.
A ligação ferroviária entre o porto e o centro distribuidor necessita de construções que controlem a circulação, como a Estação da Luz e sua sala secreta (“o medo de quem manda”) e outras que controlem os costumes, como Paranapiacaba, vila ferroviária cujo plano de construção girou em torno da posição do vigia. Como descreve o resenhista: “Todo trabalhador ou morador de Paranapiacaba sabia que o capataz não tomava conta só de seu trabalho, mas da sua vida pessoal e familiar”.
Um dos primeiros registros históricos da gênese da ligação ferroviária entre o litoral e o planalto foi registrado pela ficção, no romance A carne, de 1888, de Júlio Ribeiro. A história se passa em 1867, quando Manuel Barbosa, herdeiro de uma fazenda de café do interior do Estado, vem a Santos para resolver algumas questões provocadas pela quebra de uma casa comissária na cidade. De Santos, ele escreve uma carta para Lenita, prima distante que, órfã, vai morar na propriedade do pai de Barbosa e por quem ele é apaixonado. Essa carta já foi explorada no Porto Literário pelas descrições que faz da cidade e da própria ferrovia. Essas últimas valem hoje uma repetição, ainda que deva ser considerado o fato de terem sido escritas por um personagem, um herdeiro de formação científica e naturalista, típico de um momento histórico de empolgação social com as ciências e sobretudo com a Engenharia:
A estrada de ferro inglesa de Santos a Jundiaí é um monumento grandioso da indústria moderna.
De Santos a São Paulo percorre ela uma distância de 76 quilômetros.
Todas as obras de arte dos terrenos planos são admiravelmente acabadas, são perfeitas.
Até a raiz da serra a distância é de 21 quilômetros: há três pontes, uma das quais notabilíssima, sobre um braço de mar Casqueiro. Mede ela 152 metros, tem dez vãos iguais, assenta sobre pregões robustíssimos.
Da raiz da serra até o rechano do alto, contam-se oito quilômetros. A altura é de 793 metros, o que dá um declive de dez por cento.
Como se galgam esses desfiladeiros, essas garuras vertiginosas?
De modo simples.
Divide-se a subida da serra em quatro planos uniformes de dois quilômetros cada um. Para a tração, empregou-se um sistema adotado em alguma minas de carvão da Inglaterra. Máquinas fixas de grande força recolhem e soltam um cabo fortíssimo, feito de fio de aço retorcidos. Presos às duas pontas desse cabo giram dois trens: um sobre, outro desce. A agulha de um odômetro indica com exatidão matemática o lugar do plano em que em que se acha o trem, indica o momento de encontro de ambos eles. Um brake de força extraordinária permite suspender-se a marcha quase instantânea, e um aparelho elétrico põe os trens em comunicação imediata com as respectivas máquinas fixas. O cabo resfriado ao sair por um filete de água, corre sobre cilindros, sobre roldanas que se revolvem vertiginosas, com um ruído monótono, metálico, por vezes forte, por vezes muito suave.
O serviço é tão regular e tão bem feito, que em grandes extensões há um único jogo de trilhos a servir tanto para a subida como para a descida. Funciona a linha há mais de vinte e um anos e ainda não se deu um só desastre. Pasmoso, não?
Ainda que seja um texto de ficção e que a informação sobre o número de acidentes deva ser checada, a descrição não só nos dá indícios (de novo, eles) sobre o funcionamento de então da ferrovia como também da recepção dessa obra de engenharia sobre dois extratos da população, o da aristocracia rural no caso do personagem que é autor da carta; e o da literatura realista do autor do texto.
Epílogo
Flávio Viegas Amoreira me presenteou com um exemplar de A Capital da Solidão: Uma História de São Paulo das origens a 1900, de 2003, de Roberto Pompeu de Toledo. O que ele me disse do livro ilustra de forma sucinta o que eu quis dizer com o registro dos indícios simbólicos do porto berço da ocupação:
Leia. Metade do livro é a história do litoral.
Referências
Matinas Suzuki Jr. Rompendo o silêncio [reportagem sobre a discriminação de japoneses no Brasil]. Mais!. São Paulo: Folha de S. Paulo, 20 de abril de 2008, p. 4.
Ernane Guimarães Neto. Oriente sem harmonia [entrevista com Tai Hsuan-an]. Mais!. São Paulo: Folha de S. Paulo, 20 de abril de 2008, p. 6.
Mario Gioia. A solução parcial [entrevista com Maria Luiza Tucci Carneiro]. Mais!. São Paulo: Folha de S. Paulo, 20 de abril de 2008, p. 7.
Leonardo Trevisan. As diferentes engrenagens do medo. Caderno 2. São Paulo: O Estado de S. Paulo, 20 de abril de 2008, p. D10.
Júlio Ribeiro. A carne. São Paulo: Saber, 1975 (1ª edição 1888).
Roberto Pompeu de Toledo. A Capital da Solidão: Uma História de São Paulo das origens a 1900. Rio de Janeiro: Objetiva, 2003.