No último 26 de janeiro, Santos, uma das primeiras cidades do Brasil, celebrou seus 461 anos de existência, sendo uma das comemorações, o 6º Baile Oficial da Cidade, realizado no Mendes Convention Center. Essa festa, organizada pela Prefeitura Municipal, por meio do Fundo Social e da Secretaria de Turismo, teve o Bonde Turístico como tema principal, uma homenagem ao ícone que simboliza a revitalização do Centro Histórico e o potencial turístico da Cidade.
As linhas dos bondes elétricos foram inauguradas no dia
28 de abril de 1909. Eles foram trazidos pela The City of
Santos Improvements Company Ltda. O cartão-postal da
época, mostra o Largo do Rosário, atual Praça Rui Barbosa
com veículo elétrico, bem como sua rede de trilhos.
Acervo: Laire José Giraud
O bonde foi uma dentre muitas coisas que pertenceram à Cidade no decorrer dos anos. Era o melhor transporte coletivo do Brasil, e teve sua extinção em 1971, o que significou o fim de uma era superlativa no que dizia respeito ao transporte de massa.
Vale lembrar que em 1873 surgiram os bondes puxados a burros, cujo trajeto era do Centro ao Boqueirão. Nas outras principais avenidas, surgiram em 1875.
Há cerca de 98 anos, no dia 28 de abril de 1909, surgiu o bonde elétrico, que era explorado pela firma inglesa The City of Santos Improvements Company Ltda (CSIC), conhecida simplesmente como a City. Por volta de 1917, Santos possuía 220 bondes. Eles percorriam quase 150 quilômetros de trilhos.
Construção da linha de bondes por volta de 1920, na
Avenida Conselheiro Nébias, em direção à praia, na altura
da Av. Campos Salles. Foto Acervo: Jaime Caldas
Corriam pelos trilhos da Cidade vários tipos de bondes, como o Periquito (pintura verde), o Articulado, que era um conjunto de dois bondes ligados, e o Camarão, que era um bonde fechado.
Segundo o poeta santista Narciso de Andrade, viajar de bonde “não era uma coisa monótona, como pode parecer, por causa daqueles negócios de estar preso aos trilhos. Os bondes de Santos, os autênticos, aqueles pintados de verde, o famoso Verdecity, eram abertos. A gente viajava na paisagem. Cada viagem era uma história, porque acontecia de tudo. Encontros com amigos, início de namoro, papos eternos sobre futebol, política, mulher”.
Mais adiante, o inspirado Narciso conta que pegar o bonde andando era uma arte e saltar quando em velocidade maior (oito ou nove pontos na marcação da maçaneta comandada pelo motorneiro), um capítulo à parte.
Alguns eram verdadeiros artistas, perfeitos no lance. Pegavam o bonde na maior velocidade: de frente, de lado, de costas. Nisto se destacavam os jornaleiros.
Da minha parte, lembro do bonde com muitas saudades, principalmente porque conhecia muitos condutores e motorneiros, pois meu pai era médico do sindicato da classe – o Sindicato de Transportes Carris Urbanos de Santos, que ficava na Praça José Bonifácio, em frente à Catedral. Alguns nem me cobravam a passagem, em razão do meu pai ser grande amigo dos trabalhadores dos bondes.
Um bonde de experiência na linha Ponta da Praia – Centro,
vendo-se no estribo o Dr. Bernardo Browne, o primeiro à es-
querda (superintendente da Cia City de Santos), senador
Azevedo Junior, Belmiro Ribeiro e outras autoridades da
Cidade nos anos 20. Acervo: Laire José Giraud
Os bondes que mais utilizei foram: o bonde 4, o 42, o 39 e o 19. Este último em razão de passar pela Av. Eduardo Guinle, que acompanhava a faixa portuária. Do bonde 19, deslumbrei grandes e memoráveis transatlânticos de meados dos anos 50, até 1971. Era emocionante ver um transatlântico dos bondes, tanto nas avenidas da praia, como do cais.
As imagens dos antigos bondes, levam-me de volta ao ano de 1954, quando minha mãe levou-me ao ponto do bonde, no Canal 5, para apanhar o bonde sozinho com destino ao Centro, onde meu pai, com um sorriso, estava à minha espera. Viajar de bonde sozinho era uma grande ambição dos meninos de ontem, e com a volta do bonde, agora como meio turístico fazendo o roteiro histórico, os meninos de hoje podem viver a emoção que tive naquela longínqua década.
Cartão-postal do início dos anos 30, mostrando a Praça Mauá
com um detalhe: o bonde que fazia ponto final em frente à
Prefeitura Municipal de Santos, mais tarde retirado para
outra extremidade da Praça, por ordem do prefeito que se
incomodava com o ruído dos veículos elétricos. Na imagem,
aparece o bonde 15, conhecido como o Bonde do Cais. Servia
às pessoas ligadas a atividades do porto, como despachantes
aduaneiros, funcionários das docas, marinheiros e demais
atividades. Acervo: Laire José Giraud
Aliás, com relação aos bondes, isto é, nas décadas de 50 e 60, vi muitas coisas interessantes, como: a noiva, o noivo e convidados sendo conduzidos pelo bonde da igreja para a residência onde foi realizada a recepção. Vi também os entregadores de lojas levando grandes aparelhos de rádio-vitrola na plataforma dos bondes, excursões de estudantes do curso primário com destino à Biquinha em São Vicente, nadadores dos clubes da Ponta da Praia indo para aquela cidade para participarem de competição no Clube de Regatas Tumiaru. Vi também vendedores de cabides, compradores de roupas usadas da Casa Rouxinol, grupos carnavalescos e até a pedinte Maria Sapa, figura folclórica do passado que proferia impropérios e nomes feios em público, mas que dividia parte da esmola com igrejas da Cidade, além de tantas outras coisas que dava um capítulo especial em qualquer livro sobre o tema Bonde. Resumindo, o bonde era o centro dos acontecimentos da Cidade e da grande maioria da população santista e vicentina.
O bonde 1, que tinha fama de ser o mais rápido,
ligava Santos à São Vicente a partir da Praça dos
Andradas, passando pelo Matadouro, onde hoje é o
Sesc da linha 1. Acervo: José Pascon Rocha.
Coleção: Marcelo Tálamo
O sempre lembrado Waldemar Barbosa Trigo, no interessante opúsculo “Minha cidade”, com muita inspiração e muito humor, relata o itinerário dos bondes da Cia. City, muito utilizados pelos habitantes de Santos e São Vicente. Leia:
“O bonde 1 tinha fama de ser rápido. Era o campeão. Temível engolidor de quilômetros, saía ali da Praça dos Andradas, dirigia-se à Rua São Leopoldo, atravessava o Bairro Chinês, passava pelo Quartel da Polícia, e, em três tempos, estava diante do Cemitério do Saboó, a grande necrópole da cidade. Depois, embarafustava pelo caminho do Matadouro e ia sair em São Vicente, correndo como um foguete e pulando como cabrito sobre a linha da Sorocabana que vai para Juquiá!
Os bondes Y e o X eram conhecidos como bondes rápidos, e
também chamados de bondes fantasmas, pois surgiam repen-
tinamente. O cartão-postal mostra a esquina mais famosa
da Cidade, Ana Costa com a Praia, vendo-se o prédio já
demolido do Parque Balneário Hotel – 1933.
Acervo: Laire José Giraud
O bonde 2 seguia o itinerário para São Vicente. Mas era mais moroso tinha ares de “grã-fino”. Só andava por lugares escolhidos. Pelas praias do Gonzaga, José Menino... Quiseram mudar-lhe a rota, fazendo-o passar pelos lados do Campo Grande, mas ele perguntou se não se enxergavam e ficou nisso mesmo...
O bonde 3 fazia o trajeto da Praça Rui Barbosa ao José Menino. Tinha ares de importante. Transportava gente que cheirava a operações bancárias, negócios de títulos e grandes corretagens de café.
O bonde 4 partia dos fundos do Paço Municipal e seguia para a Ponta da Praia. Era o bonde das alunas do Escolástica Rosa e dos atletas do Saldanha e do Vasco, que contavam prosa, falando grosso em formidáveis “bagrinhadas”.
O bonde 3 (articulado), fazia o trajeto da Praça Rui Barbosa
ao José Menino. Tinha ares de importante. Era o bonde dos
executivos. Acervo: José Pascon Rocha. Col.: Marcelo Tálamo
O bonde 5 pertencia ao Macuco. Não contava muita prosa. Levava as mocinhas das lojas e das Casas de Dois Mil Réis, empregados de escritórios e operários. Era um bonde sizudo, preocupado com a vida...
O bonde 6 andava dormindo nos trilhos. Ia da cidade para a Vila Matias e voltava, com ares de quem não levava a vida a sério.
O bonde 7 estendia uma volta completa pela praia, como quem não tinha o que fazer. Saía da cidade para a Vila Nova, em direção á Avenida Conselheiro Nébias, passando pelo Boqueirão até alcançar o Gonzaga. Aí, envergonhado da sua vagabundagem, mudava de número. Passava a ser o doze e voltava desconfiado para a cidade, arrastando-se pela Avenida Ana Costa...
O bonde 9 era meio fúnebre. Passava por detrás do Cemitério do Paquetá e batia-se para a cidade, como que aliviado...
O bonde 10, um bonde sério! Tinha ares de cavalheiro idoso. Que não se metia com ninguém, saía da Praça Rui Barbosa, no seu andar estugado, alcançava a Avenida Conselheiro Nébias, enveredava a Alexandre Herculano e dava a volta na estátua dos Irmãos Andradas. Parecia que não gostava do mar.
O bonde 11 era o que menos andava. Entrava ano e ele naquela boa vida, no “dolce far niente”. Diziam que era o mais caro...
O bonde 13, um bom banhista... não saía das praias. O 14 parecia que estivera muito tempo no interior. Todo trem que chegava ele corria a esperar. O bonde 15 era chamado o “Bonde do Cais”. Servia aos marinheiros, pessoal da Estiva, funcionários das Docas, Alfândega, casas de despachos, companhias de navegação. Dava voltas enormes. Não possuía tempo para nada. Vinha da Bacia do Macuco até a estação da Inglesa e vice-versa.
Perfil do bonde típico de Santos, sem igual em qualquer
parte do mundo, como disse o prof Nelson Salasar Marques,
no livro Imagens de um Mundo Submerso – Volume I. – Obra
que todo santista deveria possuir. Acervo: José Pascon Rocha.
Coleção: Marcelo Tálamo
O bonde 16 era o bonde da paciência... ia para a Nova Cintra e esquecia-se de voltar...
O bonde 17, sempre muito ocupado, andava repleto de passageiros. Trafegava entre o Campo Grande e a Praça dos Andradas.
O 18 não saía do desinfetório. Cada vez que passava pelo Mercado, corria para o desinfetório...
O 19 parecia o bonde da Estação. Respondia pela ligação entre a “gare” e os navios atracados.
O 21 era conhecido como o “Bonde Funerário”. Estava sempre no Saboó.
O 23, sempre companheiro do 13. Bonde de chapéu de palha e maiô. De São Vicente à Ponta da Praia. O 24 era o bonde dos viajantes, sempre cheio de valises e gente vermelha que ia apanhar o trem, ou do trem para os hotéis da praia.
O 27 era o bonde de Vila Belmiro. Bonde que andava jogando futebol da cidade para o estádio do Santos Futebol Clube.
O 29, que andarilho! Cansava-se de andar da estação para a praia, passando pelo cais, Macuco, Vila Jóquei...
O 37 era chamado o bonde das moças bonitas. Servia o Marapé e adjacências...
Afora esses, havia os rápidos, os X e Y, bondes fantasmas que surgiam inesperadamente numa esquina e não respeitavam ninguém. Um perigo!”
Já o grande prof. Nelson Salasar Marques, na sua obra Imagens de um Mundo Submerso – Volume I, lançado em 1995, lembra do motorneiro, como uma figura inesquecível, e eram em sua maioria, portugueses, geralmente dependurados em grandes bigodes negros. Eles lutavam como um demônio com aquele monte de alavancas e pedais massudos. Era uma luta épica em que aqueles bravos lusitanos ganhavam sempre. Mais tarde, quando chegaram os bondes maiores e mais refinados, todo aquele sistema diabólico foi reduzido a um pequenino jogo de chaves, e o motorneiro passou a ser uma figura mais discreta: já parecia um comandante de navio.
Um dos bondes turísticos da Cidade (do tipo Camarão na cor
verdecity), estacionado em frente à Estação Buck Jones
(Praça Mauá), que permite às pessoas lembrarem ou sentirem
como era andar de bonde. Foto: Reprodução
Os bondes de Santos eram originais e únicos em sua forma visual e estética: eram de linhas retas e tudo nele lembrava a concepção grega das formas. Em São Paulo, no Rio, em Campinas, nos países da Europa por onde andei, todos eles tinham aquelas extremidades abauladas, arredondadas, enfim, veículos padronizados.
Mais tarde, ali por volta de 1970, ao passar certa noite em frente à livraria Martins Fontes, meus olhos deparam com um fascínio incontrolável: um álbum inglês que narrava a história dos bondes no mundo. Percorri de ponta a ponta, mas em nenhuma de suas páginas e naquelas centenas e centenas de fotos encontrei um só bonde igual àqueles que corriam pelas ruas de Santos, bondes verdes e marcadamente retangulares.
Então, aqueles bondes únicos no mundo começaram a ser lentamente desfigurados por administrações e administradores que queriam deixar na cidade marca de sua passagem. E aquelas carruagens de fogo e majestosas, que tinham a agressividade e a elegância de uma biga romana em campo de batalha, foram sendo mutiladas criminosamente, suas formas alteradas, a cor passando do verde original, um verde forte de planta viva, para um prateado manchado de vermelho. E o que tínhamos para o fim eram trambolhos disformes que se arrastavam pelas ruas humilhados e ofendidos.
O bonde que fazia manutenção da rede elétrica, que servia
aos veículos elétricos, na estação da Vila Matias, no início da
Av. Ana Costa, por volta de 1940. Acervo: José Pascon Rocha.
Coleção: Marcelo Tálamo
Já no ano de 1971, como disse, o bonde chegou ao fim em nome do progresso, foram trocados por ônibus de uma famosa marca, mas com durabilidade baixa, ao contrário dos bondes elétricos, que trafegaram por mais de 07 décadas. E com um detalhe: o transporte não melhorou em nada com a substituição dos bondes pelos ônibus – Era melhor com os bondes.
Este artigo foi baseado em informações dos livros: Um Passado Inesquecível (1983) de Milton Teixeira, Imagens de um Mundo Submerso (1995) do inesquecível Prof. Nelson Salasar Marques, nos escritos de Narciso de Andrade e num artigo de A Tribuninha, escrito pela jornalista Viviane Pereira.
Fica aqui os nossos parabéns a Santos, por mais um aniversário. Santos, cidade de cultura, lazer, turismo, porto, história e beleza.
Feliz Aniversário, querida Santos!