Domingo, 28 Abril 2024

Tive o grande prazer de conhecer o inesquecível Professor Nelson Salasar Marques quando fui seu aluno de inglês, no antigo Curso Científico (hoje correspondente ao Ensino Médio), durante a minha meteórica passagem pelo tradicional, rigoroso e excelente Colégio Canadá, de Santos, caso não esteja enganado, por volta de 1965.

 

O Professor Nelson Salasar Marques

sempre irradiou confiança e simpatia

aos que o cercavam.

 

Daquele ano até 1997, só o via esporadicamente nas ruas da Cidade, mas lia tudo que ele escrevia, dos artigos para o jornal A Tribuna às suas obras, das quais destaco os livros: Imagens De Um Mundo Submerso, Volumes I, II e III, que são os meus preferidos, por serem recheados de lembranças e histórias do cais, dos bondes, do Bairro Chinês, do Macuco, dos trens da estrada de ferro São Paulo Railway.

Esses excelentes livros contam com realismo fatos ocorridos na nossa querida Santos, nas Décadas de 30, 40, 50 e 60 do Século 20.

Todo santista – ou cidadão nascido em outra Cidade e que tenha amor ou interesse por Santos – deveria ler as obras de Nelson Salasar Marques, por não haver nada de igual e original.

Naquele ano de 1997, enviei ao Professor Salasar dois livros que lançara em parceria com amigos e amigas, a saber: Photografias e Fotografias do Porto de Santos (1996) e Memórias de Hotelaria Santos (1997).

 

O Bairro Chinês, onde o Professor Nelson nasceu, sempre

foi lembrado nos seus livros e escritos.

 

Dias depois, o Professor Nelson me ligou, agradecendo o envio dos livros e acrescentou alguns elogios, porque os considerara interessantes, e com belíssimas ilustrações.

Pouco tempo depois chegou da Suíça - onde reside - José Carlos Rossini, amigo e escritor da História de transatlânticos, além de grande apreciador das coisas escritas pelo Professor Nelson. Rossini, antes de se radicar em território suíço, viveu e morou em Santos.

Ao pisar em Santos, Rossini disse que gostaria de conhecer o grande escritor Nelson Salasar Marques.

Foi marcado um jantar em um dos restaurantes da Cidade. Compareceram o advogado Enzo Poggiani e o construtor Abel dos Santos.

Daí em diante, todos os anos em que Rossini vinha a Santos eram realizados novos jantares na companhia desses amigos, onde reinava muita alegria, além de uma conversa agradável.

Infelizmente, no dia 2 de fevereiro de 2005, fui informado por um amigo que o Professor Nelson havia falecido em Camboriú, Santa Catarina, o que me deixou muito triste e profundamente consternado.

É difícil encontrar palavras que dêem mais brilho a um homem que não morreu, pois ele está imortalizado nas suas obras.

 

Nosso primeiro jantar realizado em 1997: (no sentido

anti-horário) em primeiro plano, o querido Professor Nelson,

na companhia de Enzo Poggiani, José Carlos Rossini, Abel dos

Santos e do autor.

 

Ele era formado em Direito, foi professor de inglês do CCBEU – Centro Cultural Brasil-Estados Unidos, do Colégio Canadá, era brilhante escritor e membro da Academia Santista de Letras.

Além dos livros citados, devem ser lembrados O Grande Dobson e Os Mortos Não São Bem-Vindos. Escreveu vários contos e peças de teatro, além de críticas literárias e ensaios.

Morreu aos 74 anos, deixou esposa e quatro filhos, e era uma pessoa muito querida por todos.

Para homenagear o grande Nelson Salasar Marques, a Coluna Recordar do PortoGente transcreve o texto preparado por ele especialmente para o meu livro Transatlânticos em Santos – 1901/2001, lançado na Pinacoteca Benedicto Calixto, em Santos, em novembro de 2001.

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Eis o texto de Nelson Salasar Marques:

Os grandes transatlânticos da Década de 30: os porta-ilusões de uma geração

Mar e porto sempre exerceram sobre Rui Ribeiro Couto um fascínio extraordinário. Em 1932 ele deixava escorregar para o papel esta confidência nos versos abaixo:

"Oh, transatlânticos com bandeiras enfeitadas,
Não é verdade que vieste para levar-me?"

 

Quando o assunto era navios, o transatlântico francês

Massilia era um dos lembrados pelo inesquecível professor.

 

Ribeiro Couto associava os grandes navios a partidas e via neles a salvação para a sua vida.

Eles iriam arrancá-lo daquele mundozinho pequeno, daquele cotidiano sem grandeza em que o garoto sensível morcegava, envolvido em inquietação grande.

E um navio o levou para o seu destino, para bem longe de Santos e para sempre. E nenhum navio o trouxe mais. Morreu por lá.

Ao contrário de Ribeiro Couto, os grandes navios de passageiros que por aqui encostavam ao longo da Década de 30, tinham para mim o sentido das chegadas, e não de partidas.

Eu os incorporava à minha vida e eles não eram para mim instrumento de fuga, mas de permanência. A minha alma não partia com eles, eles é que partiam com a minha alma.

O meu grande medo é que eles se fossem por aqueles mares selvagens e traiçoeiros, como dizia Joseph Conrad, e não mais voltassem para me ver.

Porque a perda deles seria para mim mutilação grande e irremediável. É mutilação grande e irremediável você perder um ponto de referência, principalmente quando se é criança.

Um dia, dia maldito de 39, a guerra chegou. E os grandes transatlânticos nunca mais voltaram para me ver, não para me buscar. Porque eu não queria ir com eles. Eu queria que eles ficassem comigo.

E na linha do horizonte nunca mais nenhum menino viu a silhueta encantada daqueles palácios flutuantes que com as suas presenças escancaravam as janelas de nosso mundo sensorial, jogando-nos no vórtice de emoções nunca dantes sentidas.

Hoje, mergulhando no tempo em busca das fontes geradores de minha formação, daqueles eflúvios a cujo impacto se sedimenta o tecido infantil que levará ao Homem, eu encontro duas entidades portentosas sem as quais dificilmente eu seria o que hoje sou: os trens da Inglesa e os gigantescos transatlânticos alemães.

O Cap Arcona e o Cap Polonio. De contrapeso vinham outros, o Massilia, o Alcantara, o Asturias, o Lutetia, o Arlanza e o Conte Grande.

No frenético território do Bairro Chinês a entidade suprema eram os trens da Inglaterra.

E o trem Cometa, encostado à plataforma da estação, tinha aquela força mística das lendas celtas, da fada Morgana, de As Brumas de Avalon.

Tenho pena danada de menino ou de homem que nunca andou no trem Cometa, que nunca se banhou na atmosfera mística daquela carruagem impetuosa que a uma velocidade diabólica varava pântanos, subia serras e chispava ao longo dos descampados, soltando faíscas, para atender o apelo que lhe vinha do planalto.

No Bairro Chinês os apitos dos navios não nos chegavam. O barulho das rodas dos trens da Inglesa não deixavam. Navio não tinha vez no Bairro Chinês.

Mas os trens da Inglesa faziam uma concessão ao porto e aos navios. Até o ano de 1939, quando transatlântico chegava ao cais, cheio de imigrantes a caminho de São Paulo, às vezes já encontrava ali esperando por ele, rente ao costado, alguns vagões luxuosos prontos para seguir para a Capital.

A bordo do bonde 19, ainda cheguei a ver esses vagões pra onde o navio ia desovando diretamente os seus ruidosos passageiros.

O bonde 19 operou em minha vida, em 1937, transformação inesperada: jogou-me no Macuco, bairro mais indomável e heróico de que se tem notícia na História de Santos.

Naqueles tempos, quase metade da cidade era Macuco. Ponta da Praia, Aparecida, Embaré, Avenida Afonso Pena, Canal 4, Canal 5, Canal 6, Canal 7. Tudo era Macuco.

E da casa nova, casa de dois pavimentos, erguida a uma altura de cinco metros, nós podíamos seguir a rota dos navios desde a sua entrada na barra até o momento de atracação no cais do porto.

Aquela casa, hoje demolida, era uma espécie de Torre de Belém, de onde era possível detectar os navios à distância.

Alguém gritava: "Lá vem um navio entrando", e todos seguiam para a ponta da varanda para devorar com os olhos de menino o transatlântico que vinha visitar Santos.

Da cozinha seguíamos os seus movimentos no cais e da outra extremidade da varanda tínhamos visão aberta e totalmente desimpedida da entrada da barra e do mar alto.

Saída e entrada de navio causavam uma comoção danada em casa, principalmente em hora de almoço.

Muitas vezes, mal a sopa ia pro prato e já um apito anunciava a saída de um grande navio.

Meu pai nos fazia sentar à mesa e comer a sopa primeiro, dizendo que havia muito tempo, que tínhamos uns quinze minutos até que o navio desaparecesse na outra ponta, engolido pelo mar.

A porta e a janela da cozinha eram totalmente abertas, de maneira que comíamos a sopa seguindo as manobras e a marcha do navio.

Quando, depois de esforços diligenciados, a sopa conseguia sumir do prato, normalmente o transatlântico já começava a despontar ali pelo que seria hoje o Clube de Regatas Vasco da Gama e o campo visual de desfrute que tínhamos da cozinha já não conseguia alcançá-lo.

Mas nós já o estávamos esperando na outra ponta para vê-lo sumir na linha do horizonte.

O navio chegava até o morro que tinha aquelas letras CINZANO, fazia uma volta muito ampla, apitava, e depois engrenava as máquinas e se deixava engolir pelo mar.

O apito do navio era triste e ele jogava aquela tristeza toda em cima da molecada. Levava algum tempo pra molecada engrenar nas brincadeiras outra vez.

E quem daquele tempo ainda vivo está hoje, terá lembrança forte daquele percurso soberbo e luminoso que o transatlântico, com sua presença mágica, ia costurando com seus fios de ouro ao longo da barra até se aninhar e se deixar mansamente amarrar no cais de pedra do porto?

 

O famoso trem Cometa, da São Paulo Railway, sempre

lembrado nas obras do professor. Seu pai foi

funcionário dessa companhia ferroviária, razão que

sempre o levou a lembrar assuntos relacionados à ferrovia.

 

O território àquela época estava praticamente deserto de construções e como as chácaras dos japoneses eram de cultivo de pouca altura, a gente podia desfrutar de visão completa e desimpedida.

Muito lavrador suspendeu o seu trabalho e, apoiado ao cabo da enxada, seguia o deslocamento do navio.

Muito menino parou a mão dançarina no empinar do seu papagaio, deixando-o órfão e imobilizado lá no alto, para seguir a marcha do navio.

Muita lavadeira parou a lavagem de roupa. Mesmo a uma distância de um quilômetro, nós podíamos ver o casco negro da embarcação deslocando as águas.

Mas era à noite que a saída de um daqueles navios nos deixava arrepiados. Era visão sobrenatural.

O transatlântico parecia uma cidade flutuante, uma espécie de ilha que se fosse movendo e iluminando o caminho por onde passava.

À distância, parecia uma tocha que nas mãos do deus Netuno estava sendo levada para o mar.

E, para o desespero de criança, desaparecia naquela escuridão aterradora da noite. O nosso medo é que aqueles navios se perdessem pelos perigosos caminhos do mundo e nunca mais voltassem a Santos.

Hoje, quando por acaso estou na praia, junto ao mar, e vejo navio grande entrando na barra, eu olho para as pessoas que estão por perto para lhes ver a reação. E me surpreendo.

Aquela visão encantatória daquele soberbo monstro marinho, abrindo no ventre das águas o seu corredor por onde se move, não parecia dizer muita coisa para as pessoas de hoje.

E quando um grande navio em movimento não desperta emoção numa pessoa que o contempla, então é porque alguma coisa muito importante se perdeu no caminho ao longo das décadas.

Alguma coisa irrecuperável.

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Finalizando, poderiam ser ditas muitas coisas realizadas pelo saudoso Professor, mas são tantas que é quase impossível lembrar tudo de bom que ele realizou, pois com certeza pendem para o infinito.

Fica aqui registrada a nossa gratidão para esse homem que escreveu as coisas superinteressantes, emocionantes, contagiantes e sensíveis ocorridas em Santos.
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