Terça, 19 Março 2024

Há séculos, vejo as reclamações da indústria nacional contra a concorrência predatória estrangeira. Num momento, eram os estaleiros a reclamar. Noutro, os fabricantes de contêineres. Ah, se desmanchássemos um contêiner vindo da Ásia, só o aço resultante valia mais que o contêiner importado. Em anos recentes, a reclamação principal tem sido da indústria têxtil, que não resiste à concorrência chinesa.

BR-163 e o caos santista. A culpa, lógico, é dos chineses... 

Tento analisar a questão de modo equilibrado, por meio de algumas perguntas. Como os chineses conseguem vender numa cidade brasileira um produto mais barato do que o fabricado na própria cidade nacional, mesmo com uma longa viagem desde a China, impostos de importação e tudo o mais?

A resposta padrão é que naquele país se usa trabalho semiescravo, lá se aplica subsídio (configurando o que se costuma definir como 'dumping') e não há controle de qualidade. Bem, quanto de fato representa a mão de obra no custo final de um produto? Por menor que seja o custo do trabalhador chinês, duvido que seja tão inferior ao daqueles bolivianos empregados por certas "empresas" existentes na própria capital paulista.

Quanto ao subsídio, mesmo na China não pode ser eterno, pois eles têm toda uma economia para movimentar. O Brasil pode protestar nos órgãos internacionais do comércio. Complicado? Também pode ajustar impostos de importação para contrabalançar o subsídio. E, bem, pode também agir contra as tais "empresas" que usam trabalho semiescravo na própria capital paulista. Por que isso tudo não é feito com a eficácia necessária?

Mas, há outras distorções nessa questão. Reclama o consumidor que opta por produtos chineses, desprestigiando os nacionais, por causa do alto custo final do produto brasileiro. E por que o produto brasileiro custa tanto? Ah, por causa dos impostos embutidos. Ah, então, se por hipótese tirássemos toda a carga tributária, o problema estaria resolvido? Duvido.

Primeiro, porque a qualidade e a durabilidade do produto chinês ainda são inferiores às do nacional (e 'eles' estão tratando de corrigir esse problema, as indústrias ocidentais que se preparem para concorrer também em qualidade). Segundo, porque a pressão mais firme sobre o governo faria que os controles e impostos de importação eliminassem a diferença. A propósito: a carga tributária alegada é de 40%, enquanto a carga do imposto de importação é de 60%. Se ainda é necessário fazer mais, caberá perguntar a quem servem os políticos nacionais, que não corrigem as distorções.

Uma observação comum é que os chineses produzem em alta escala. Ora, o Brasil também pode produzir em alta escala, temos mais de 200 milhões de consumidores potenciais no mercado interno, e com boa política comercial poderíamos vender no exterior – inclusive para os chineses... Mais: vejo sites no Brasil vendendo legalmente produtos chineses pelo dobro do preço original, e não faltam clientes. O comprador, com alguns cliques no 'mouse', pagaria muito menos. Tais sites enriquecem apenas peneirando a Internet e reunindo uma variedade de opções muito maior do que a ofertada pela indústria nacional. Erro dos chineses?

Poderia analisar outros aspectos, mas minha experiência no trato com o empresariado nacional me faz lembrar que talvez o problema não sejam os chineses (antes, eram os japoneses e os coreanos!).

Leste-Oeste: uma ferrovia sem trilhos

Em mais de uma vez, vi o empresariado nacional perdendo oportunidades por inércia, por desunião, por interesses outros, por acomodação. Quando o Brasil era um dos maiores construtores navais do mundo, vi empresário de navegação aplicando recursos na compra de cavalos de raça para fazer bonito no Jockey Club. Quando certos fiscais de meia tigela achacavam certas empresas, vi uma poderosa federação se encolher de medo, deixando de defender os setores a ela filiados (e depois soube a razão: certo prédio que abrigava sindicatos filiados a essa federação estava cheio de irregularidades fiscais e a entidade temia mexer no vespeiro). Quando o Oriente Médio nadava em petrodólares e não sabia o que fazer com eles, vi uma só empresa japonesa colocar mais vendedores naquela região que todas as empresas brasileiras juntas: o Brasil não vendia, era comprado. E mal comprado, porque uma estatal brasileira concorria com as próprias empresas nacionais, vendendo mais barato...

Um pouco disso (apenas um pouco) mudou para melhor. Mas, agora mesmo, quando o Brasil quer e precisa ampliar sua presença no cada vez mais competitivo mercado mundial, vejo os acessos aos portos congestionados por não implementar controles simples e baratos; vejo acidentes nas estradas esburacadas por falta de investimentos no setor; vejo a falta de medidas de proteção contra incêndios (uma doce economia antes do sinistro, mas de resultados bem amargos).

Vejo erros gerenciais grotescos por não se investir em capital humano competente, nem em capacitação adequada. Vejo desperdícios monumentais, com 'justificativas' ridículas, vejo o descompasso entre ações que deveriam ocorrer de modo simultâneo ou numa sequência específica. Vejo o tanto que se perde com burocracia inócua, em tempo gasto e em papelada inútil. Vejo tudo o que comumente enfeixamos na expressão 'Custo Brasil". Vejo ainda manobras fabulosas de transferência de nossos recursos para o estrangeiro, e me preocupo principalmente com o que estão fazendo nas áreas de energia e telecomunicações.

E penso: terão lá os chineses a sua parcela de culpa, mas devemos tosquiá-los por conta de erros que poderiam (e deveriam) ser corrigidos aqui mesmo?

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