Sexta, 27 Dezembro 2024

A coluna da semana passada, na qual falamos sobre os costumes existentes entre os portuários, fez com que eu me recordasse de minha infância e de minha vida como filha de portuário. Nostalgias à parte, a coluna desta semana tem por objetivo mostrar como cotidiano e sociologia estão bem imbricados. Claro, que a melancolia tomou conta de meus pensamentos, porém, essas lembranças são essenciais para reafirmar quem sou e vêm bem ao encontro da discussão.

 

Na semana passada falamos bastante dos costumes como fonte de resistência para o trabalho, no qual o ofício torna-se um costume cultivado e transmitido pelas gerações, sejam elas familiares ou operárias. Os costumes, entretanto, ultrapassam os limites do porto. Como bem ressaltado ao final da coluna, os costumes não compõem apenas “(...) um modo de ser portuário na beira do cais, mas que extrapola os armazéns e toma conta das ruas, das casas, das cidades como um todo, imprimindo a elas um modo de viver característico daqueles, que como poucos, têm o costume de viver do mar”.

 

Nesse sentido, aqueles que fazem parte das famílias de portuários acabam vivenciando a formação e a perpetuação destes costumes e, de certa forma, os introjetando. Em minha memória estão vivas as festas de 1º de maio que aconteciam na colônia de férias dos conferentes, assim como os acampamentos destinados aos filhos e netos que foram feitos na colônia para comemoração do dia das crianças. A colônia de férias é um local importante para a construção da sociabilidade a partir das categorias profissionais, unindo não somente os trabalhadores, mas também suas famílias.

 

Lembro-me também das idas ao sindicato, quando meu pai, em nossa companhia (minha e de meus irmãos), passava pelo sindicato para ir ao banco, tomar um café ou mesmo levar meu irmão para cortar o cabelo no barbeiro do sindicato. Nesses momentos pude acompanhar o movimento dos trabalhadores no salão principal em busca de um lugar no terno ou olhando suas correspondências nas “caixinhas” ou mesmo lendo jornal e batendo papo.

 

Para alguns pode parecer estranho que trabalhadores em pleno horário comercial tenham tempo para ler jornal e bater papo, porém, para os portuários é um fato normal. A natureza ocasional do trabalho permite que estes trabalhadores possam vivenciar momentos de sociabilidade em horários incomuns para a maioria da classe trabalhadora. E estes momentos são essenciais para que os costumes atravessem a linha do cais e passem para o cotidiano dos trabalhadores.

 

Tais momentos foram importantíssimos para a construção de minha identidade social e também da minha personalidade. Elementos como solidariedade, cooperação, lealdade foram transmitidos pela vivência com o meu pai, seus amigos e suas famílias. Estes elementos foram constituídos na prática do trabalho, porém, extrapolaram as linhas do cais e constituíram-se como parte importante da formação do caráter daqueles que vivem como portuários e convivem com os portuários.

 

Nesse sentido, posso dizer que o que sou é parte do que os portuários me ensinaram a ser. Ser leal, solidária, cooperativa, consciente das necessidades da vida e de que estas não se restringem ao meu cotidiano, mas que transpassam para outras esferas. Isto interferiu diretamente na carreira profissional que escolhi.

 

Agradeço aos portuários de Santos por me ensinarem seus costumes, mas agradeço principalmente ao meu pai, que no dia-a-dia de nossa casa cultivou o que de melhor tem em ser portuário, que nos mostrou que quem é do mar nunca enjoa, que quem é do mar nunca desiste e que desta imensidão de água salgada não apenas retiramos nossas formas de sobrevivência, ma também construímos nossa razão de existência.

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