Sexta, 26 Abril 2024

escrito por André de Seixas e Osvaldo Agripino, administradores do site dos Usuários dos Portos do Rio Janeiro

Está profundamente enganado aquele que acha ser fácil fiscalizar e regular a armação estrangeira. As sabatinas feitas recentemente (dias 26/03/2014 e 02/04/2014) pelos senadores da Comissão de Infraestrutura aos indicados à Diretoria da ANTAQ mostram que estamos muito aquém de um debate sério e qualificado sobre Política de Marinha Mercante para o Brasil, setor considerado estratégico em qualquer país que pretenda ser competitivo no mundo globalizado. 

Usuários e reguladores precisam se capacitar e se organizar para defender o interesse público diante da voracidade que grande parte de tais armadores possui para obtenção de lucro muito acima dos seus custos marginais. Essa ignorância do regulador faz com que tais prestadores de serviços possam criar e cobrar preços abusivos com THC, THC2, sobre-estadia de contêineres, assim como cláusulas de bill of lading com lei e foro que violam a ordem pública, além de outros preços extra-fretes que mudam de nome segundo a criatividade do gerente do armador da região, desde que subordinada aos interesses do chefe da matriz.

Nesse ambiente é possível um armador demandar um exportador brasileiro que vendeu FOB, portanto, sem qualquer relação jurídica com o armador, e conseguir condenar a empresa brasileira a pagar sobre-estadia de contêiner de quase R$ 5 milhões para 38 ctns reefer, em primeiro grau da Justiça brasileira (Proc. n. 0011288-54.2013.8.26.0562, em curso na 12a Vara Cível de Santos). Isso significa que a sobre-estadia custa cerca de R$ 135 mil, enquanto o ctn custa R$ 15 mil, ou seja, quase 10 vezes o valor do cnt, e o pior: o ctn fica com o armador. Há alguma muito errada!!! A ANTAQ deveria regular isso urgentemente, afinal são bilhões de dólares remetidos todos os anos com fretes, afretamentos e tais preços, o que corresponde a várias refinarias de Pasadena, desde a sua criação em 2001.

Em países como EUA, UE e China, e até mesmo Nigéria, como já informamos nesse sítio, além de incentivarem a criação de associações de usuários, a regulação de tais armadores é uma das mais importantes funções da agência reguladora. Isso ocorre pelo grau de letalidade que tais agentes podem causar à economia e a competitividade de tais países com suas práticas abusivas, especialmente quando se trata de armadores com navios registrados em bandeiras de conveniência, já que 70% da tpb do mundo está registrada em tais países.

A forma pela qual as empresas de navegação organizam as suas frotas mercantes pelo mundo, faz com que a missão do órgão regulador de outorgar autorizações para essas empresas estrangeiras, de forma que estejam aptas para exploração da nossa navegação de longo curso, seja extremamente complexa, trabalhosa e especializada. Porém, essa enorme complexidade é proporcional à necessidade de fiscalizar e regular as atividades dessas empresas, para resguardar os interesses do país e aumentar a inserção soberana dos produtos brasileiros no comércio exterior. Afinal o frete e os serviços portuários representam, em condições normais, cerca de 70% do custo da logística do produto. Só perde para o valor da carga.

Muitos já ouviram falar em bandeiras de conveniência, ou Flag of Convenience, onde se registram os FOC Ships. Nesse cenário, para que possam compreender a letalidade e o risco causado por tais navios, os sindicatos de marítimos conscientes da exploração a que tais armadores submetem os seus trabalhadores, chamam tais navios de F_ _ K ships. Isso mesmo. A maioria dos grandes acidentes marítimos decorre de navios registrados em tais países. De forma simplificada, é um método legal, através do qual, os armadores buscam paraísos fiscais para registrar as suas embarcações, que passam a arvorar as bandeiras desses países, ou seja, a nacionalidade da embarcação passa a ser a do paraíso fiscal.  O site da ITF - International Transport Workers' Federation (www.itfglobal.org) relacionou 34 (trinta e quatro) nações que fornecem bandeiras de conveniência para as principais empresas de navegação do mundo.

A busca por bandeira de conveniência visa reduzir os custos dos armadores nas esferas tributária, social (trabalhista)  e ambiental. Para que um navio passe a arvorar a bandeira de um paraíso fiscal, faz-se necessária a abertura de uma empresa com sede no paraíso fiscal e é justamente essa empresa que passa a ser a proprietária da embarcação. Além da redução de custos, os armadores também buscam diluir seus riscos. Imaginem, por exemplo, uma catástrofe ambiental em que os prejuízos cheguem a bilhões de dólares e ultrapasse o valor de cobertura do seguro (P&I).

De certo, um prejuízo bilionário, pode decretar o fim de uma empresa de navegação, penhora de embarcações, etc. Para contornar esses riscos, diversas empresas são abertas, em diversos paraísos fiscais, de forma que se coloquem nessas empresas pouquíssimas embarcações, às vezes até uma somente. Como exemplo, após o acidente do Exxon Valdez, em 1989, o armador criou várias empresas, cada uma com um só navio, a fim de reduzir a exposição ao risco e fugir das suas responsabilidades. No Direito, nem tudo que é legal é moral.

De certo, grandes armadoras transnacionais que, para todos os efeitos, chegam a ter uma frota de mais de 500 navios abrem diversas empresas em diversos paraísos fiscais, diluindo seus riscos. Quando olhamos para um enorme navio, que traz a marca de uma grande armadora no costado e na chaminé, logo imaginamos que, legalmente, o navio pertence a ela. Negativo, pois as marcas das empresas famosas estão ali, porque os contratos de gestão comercial (time charter) permitem não só a colocação da marca, mas também a mudança do nome da embarcação.

Não será surpresa, por exemplo, se uma mega carrier, que coloque 40 navios para operar aqui no Brasil, tiver aberto em paraísos fiscais 40 empresas diferentes, uma para cada navio. Agora, se pegarmos as 24 armadoras especializadas em contêineres e somarmos a quantidade de navios que colocam para operar no país e considerarmos que cada navio pode estar em nome de uma empresa estabelecida em um dos 34 países de bandeira de conveniência, podemos ter, somente no segmento de contêiner, centenas de empresas, algumas até de mala que usam liberianos, panamenhos, ou jamaicanos como testas de ferro. Se essa conta assusta, imagine que isso aconteça com todos os navios de bandeira estrangeira que operam no Brasil. Esse risco aumenta mais quando o Estado brasileiro não sabe quem são, quais as garantias e como executar em caso de crédito de empresa brasileira.

A complexidade do trabalho do órgão regulador está justamente no fato de que, para cada empresa estabelecida em paraísos fiscais, deverá ser outorgada uma autorização diferente. Se avaliarmos que considerando apenas navios de linhas regulares a coisa não é tão simples, imaginem para os navios tramps que, eventualmente, prestam serviços na nossa navegação de longo curso. Estamos falando, além dos navios porta contêineres, dos graneleiros, petroleiros, carga geral e de passageiros. Nesse caso, em face do alto custo fixo dos tripulantes em navios de cruzeiros, faz com que Bahamas seja o país com maior quantidade de tpb desse setor nele registrada. Isso se dá a fim de reduzir custos trabalhistas, vez que esse país ratificou menos de 10% das Convenções da OIT que regulam o trabalho marítimo.  Para nós, essas bandeiras são de inconveniência, tal como mencionamos em obra aqui divulgada.

O grande risco dessa falta de outorgas de autorização para armadores estrangeiros, considerando a forma como  organizam suas frotas em paraísos fiscais e em empresas de mala, muitas vezes, oferece riscos ao país como um todo, às pessoas que viajam em navios de cruzeiros, atrapalha as nossas autoridades marítimas que, assim como a ANTAQ, não conhecem quem são, onde estão e quais garantias oferecem ao país essas empresas. O máximo que se conhece aqui são os seus agentes marítimos, meros mandatários que não respondem pelos seus mandantes e que, ainda que carreguem o mesmo nome do armador, ainda assim, continuarão a serem mandatários.  Aliás, cabe salientar que uma agência marítima que carregue o nome de um grande armador, também é mandatária de empresas liberianas, panamenhas etc.

O caso das omissões de portos, por exemplo, pode acabar em pizza, pois não duvidamos que os grandes armadores venham fugir das suas responsabilidades colocando a culpa pelas centenas de ocorrências nas empresas proprietárias dessas embarcações que estão nos paraísos fiscais. E se uma embarcação colide ou abalroa? E em caso de um grave acidente ambiental, como já tivemos oportunidade de aqui denunciar?  E em caso de um acidente de grandes proporções em navio de cruzeiro? Quem se responsabilizará?

Resta saber, se os novos diretores da ANTAQ, funcionários de carreira voltados para o setor portuário e para as hidrovias interiores e o Superintendente de Navegação e Apoio Marítimo, recentemente homenageado pelos armadores por ele regulados, assumirão todas essas responsabilidades. Nós não estamos fazendo tempestade em copo d água, tampouco somos loucos para exigir as outorgas de autorizações das armadoras estrangeiras em vão. Apenas, como brasileiros, queremos o melhor para o nosso país e povo. Ainda que o nosso ordenamento jurídico não obrigasse as outorgas de autorização, o que não é o caso, vez que o legislador não foi louco nem omisso, ainda sim, diante dos riscos, deveríamos ser minimamente responsáveis e proceder com os registros.

Por fim, como vimos, não é fácil regular tais armadores, mas, mais difícil é suportar práticas abusivas dos mesmos, que prejudicam nossa competitividade, por prazo indeterminado. Dessa forma é urgente que a ANTAQ, por meio da sua nova diretoria, comece a se preocupar em fazer cumprir o marco regulatório e a proteger os interesses nacionais, inclusive com uma política para que tenhamos frota mercante à altura da nossa economia, assim como serviços com preços competitivos. Sem isso, a ANTAQ continuará patinando e enxugando gelo, pois qualquer redução de custo proveniente da Reforma Portuária continuará sendo capturada pelos armadores que aqui operam sem regulação.

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