O romance 'Navios Iluminados' volta a ser assunto da coluna. Desta vez, o foco é direcionado para a forma como a amizade entre o protagonista José Severino de Jesus e Felício é utilizada pelo autor como eixo principal da narrativa. Isso ocorre de duas maneiras: a mobilidade dos dois personagens faz com que a história incorpore diversos personagens e grupos sociais; e a própria tensão entre os dois permite ao autor inserir um conteúdo de denúncia social.
Começo pelo último tópico: em um texto chamado 'O pobre e o proletário', Roland Barthes avalia que os filmes de Charles Chaplin mantêm-se atuais tanto estética como politicamente porque, ao caracterizar Carlitos como pobre, propiciam a identificação dos telespectadores com o personagem. Para Barthes, os filmes de Chaplin tornariam-se datados e sem função social se Carlitos fosse identificado como um esclarecido proletário engajado na revolução e na luta de classes, apesar de todas as simpatias do cineasta pelo comunismo. Resumindo, a localização das histórias em um tempo anterior à tomada de consciência política produz uma tensão que oferece uma série de possibilidades narrativas e de conteúdo para o autor desenvolver a ficção.
Essa tensão é clara entre José Severino e Felício: o primeiro tem o trabalho como um valor moral, busca o emprego para ajudar a família, lamenta a contribuição dada ao sindicato. O outro trabalha porque precisa, recusa-se a casar porque preza a mobilidade e a independência que estar sozinho no mundo lhe oferece, leva o primeiro para o sindicato e é a voz narrativa que exprime os problemas dos estivadores no porto de Santos entre 1926 e 1931, intervalo de tempo em que se passa a história.
O próprio período da produção da obra favorece essa análise. A década de 30, com a ascensão do Estado Novo de Getúlio Vargas, é marcada pela criação da legislação trabalhista nos moldes que a conhecemos hoje (instituição do salário mínimo, do décimo-terceiro, etc...). Os estivadores, por sua vez, obtiveram uma grande vitória: a instituição do “closed shop”, sistema em que o sindicato detém o poder de determinar o número de trabalhadores para cada serviço.
Ranulpho Prata publicou a obra em 1937, no auge das transformações políticas desse momento histórico. Conscientemente ou não, a localização da história no período imediatamente anterior a livrou de ficar datada ao mesmo tempo em que permitiu ao autor tecer um testemunho sobre o cotidiano dos moradores do Macuco, na sua maioria trabalhadores do porto. Daí o mérito do escritor.
Já a mobilidade dos dois personagens permite a construção de um painel de época. Mobilidade aqui não tem nada a ver com ascensão social. Felício começa e termina a história como estivador e gasta tudo o que ganhou no jogo do bicho em uma viagem de primeira classe para Buenos Aires, onde freqüenta cassinos e prostitutas; já Severino passa de migrante desempregado a estivador que não consegue nunca fechar as contas e acaba morto pela tuberculose.
O termo mobilidade se refere à movimentação dos dois pelo espaço da ficção: a mudança do sertão nordestino para a grande cidade do sul; o relacionamento com os proprietários dos quartos de pensão do Macuco; as tratativas com os comendadores e políticos para a conquista de uma vaga na Companhia Docas; o caminho da casa ao trabalho; as histórias de portuários de todo o mundo que trabalham no cais de Santos; as cenas de trabalho e os acidentes; as reuniões do sindicato e a passagem pelo pavilhão de tuberculosos da Santa Casa. Em todas essas situações pelo menos um dos dois está lá, presença que abre uma janela para o mundo daquele tempo. Em termos literários, os dois tomam parte de todas as subtramas do romance.
Esse andamento da narrativa causado pela conjunção da tensão entre o pobre e o operário de Barthes com a mobilidade espacial dos dois personagens ocorre desde a primeira cena de 'Navios Iluminados', na qual José Severino acorda em um quarto de pensão. Ele havia acabado de chegar em Santos e ainda estava desempregado. Faltam poucos minutos para as sirenes da Companhia Docas acordarem os mais de cinco mil moradores do bairro portuário. Na cama ao lado, dorme Felício, estivador da turma 65.
E eles continuam juntos por todo o livro. Felício se muda com Severino para outra pensão, protege-o na turma e o leva para o sindicato. Após o casamento de Severino, os dois viram compadres e Felício se torna padrinho de um dos filhos do amigo. Ele também está lá na última noite de Severino com vida, levando para o amigo uma visita especial, um irmão que chega da Bahia também para tentar a sorte em Santos e começar tudo outra vez.