Iconografia é o título de uma das seções de Sobre o romance. Ocupa um intervalo de 29 páginas entre entre partes mais densas do livro de 1.117 páginas. A empreitada, com dezenas de autores escrevendo sobre as origens, formas e conteúdos do gênero do romance, foi organizada por Franco Moretti, que escreve sobre as relações entre literatura e espaço.
Quem trata da iconografia (estudo da origem e formação da linguagem visual) no livro é Margareth Doody, professora de Literatura da Universidade de de Notre Dame (Indiana, EUA), de quem leio algo pela primeira vez, o ensaio Dar um rosto ao personagem, que vai da antiguidade ao cinema, impressionante:
As primeiras obras que podemos definir como “romances” já vêm ilustradas para os leitores da época [antiga]. O texto usualmente intitulado Metíoco e Partênope, que conhecemos apenas num fragmento, vem, por exemplo, ilustrado num mosaico descoberto na região de Antióquia. Apuleio [autor do século II] – cujo “asno de ouro” foi relacionado ao animal Seth [divindade egipícia representada algumas vezes por um asno] – parece ter inventado a história de Amor e Psiquê. Seu romance, que transforma uma figura abstrata e uma semidivindade mitológica em personagens narrativos, funda assim um novo mito, enquanto o abraço e o beijo entre Amor e Psiquê, por sua vez, se tornam objetos de múltiplas e repetidas representações: imagens e estátuas que reforçam o poder do “pequeno épico” (epyllion) de Apuleio.
O trecho sugere que desde o início da escrita (alfabética ou não) os leitores de romances sempre estiveram acostumados a conhecer também imagens que representassem os personagens destas histórias. Isso evolui dos pergaminhos e cerâmicas, passa pelos afrescos, chega aos quadros e às ilustrações e temas românticos do século XIX: “Desde a antiguidade os leitores querem imagens do autor, tal como hoje damos por assente que o livro trará a foto do autor na capa ou contracapa: a ideia de que a figura do autor é uma invenção recente, nascida no começo da Modernidade, ela sim é que é uma invenção recente”.
Ao final do ensaio, o cinema assume o papel de representar autores e personagens:
Pode-se dizer que a melhor imagem contemporânea de Emma, personagem de Jane Austen [romancista inglesa do século XIX], é o rosto da atriz Gwyneth Paltrow, que também aparece na capa de uma edição popular do romance. Ao que parece, existe uma necessidade de representar os personagens em que “acreditamos”. Os divos e divas, astros e estrelas do cinema, assim redespertam uma vez mais a antiga relação entre o personagem de romance e a divindade.
No ensaio Cinema e romance: do visível ao sensível, 327 páginas depois, Alberto Abruzzese, professor de Sociologia dos Processos Culturais e Comunicativos em Milão, retoma o cinema para traçar a a influência que literatura exerceu sobre a narrativa cinematográfica a partir da virada do século XIX para o século XX. Um dos principais exemplos está na própria epígrafe, de Thomas de Quincey, poeta romântico, autor das Confissões de um comedor de ópio, que evoca a sala escura do cinema: “Da profundeza das trevas, do fantástico imaginativo do cérebro tu extrais cidades e templos, mais belos do que as obras de Fídias e Praxíteles [escultores da Grécia antiga], mais soberbos do que o esplendor da Babilônia e de Hecatonfilo; da anarquia do pesadelo onírico tu chamas à luz do sol os rostos de belezas há muito tempo sepultadas”.
Abruzzese conta que os primeiros dias do cinema são de encantamento, as pessoas iam às feiras e frequentavam as tendas de projeção maravilhadas simplesmente com as imagens em movimento (passantes por avenidas e composições de trens são das mais comuns). Só posteriormente “o espectador sentiu necessidade de figuras intermediárias, de esquemas interpretativos, de plataformas culturais para dar sentido à sedução direta da tela. Foi aqui que se inseriram, como veremos, a tradição e a mecânica da narrativa”.
Das questões gerais das relações entre cinema e literatura, tomamos um microscópio para observar um caso específico de como isso ocorre. Quem nos conta é o historiador italiano Carlo Ginzburg no ensaio Decifrar um espaço em branco, em que mostra como as pausas e cortes de cenas dos romances de Gustave Flaubert prenunciavam, na segunda metade do século XIX, a edição cinematográfica.
Um desses cortes ocorre entre os capítulos V e VI de Educação sentimental (1869).
Um grito de horror se levantou da multidão; com o olhar, o agente afastou os circundantes; e Fréderic, boquiaberto, reconheceu Sénecal.
VI
Viajou.
Conheceu a melancolia dos piróscafos, as frias manhãs sob a tenda, o espanto admirado diante das paisagens e das ruínas, a amargura das atrações sem conseqüência.
Ginzburg mostra como esse espaço em branco entre o reconhecimento de Sénecal e a viagem foi justamente elaborado por Flaubert, já que uma antiga versão manuscrita do romance traz a versão acompanhada pelo advérbio temporal: “Depois viajou” (o efeito de corte seco pode ser obtido lendo-se o trecho acima com “depois viajou” e, em seguida, a versão final). Para Ginzburg, a supressão do advérbio faz parte de uma estratégia textual complexa que produz “efeitos de separação” (expressão de P.M. Wetherill), o mesmo que faz a edição cinematográfica.
Conclusão
Essas leituras cruzadas não servem para muita coisa, apenas mostram como alguns hábitos culturais (o fato de irmos ao cinema para acompanhar uma história ou para acompanhar um ator ou atriz que encarna tal ou qual personagem) são construídos por uma série de elementos que vão se somando a cada vez que uma história é recontada, como se cada leitura (inclusive a exibição de um filme) fosse uma volta a mais numa espiral ascendente de sentido e apreciação estética.
Referências
Margareth Doody. Dar um rosto ao personagem. In: A cultura do romance. Organização Franco Moretti. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
Alberto Abruzzese. Cinema e romance: do visível ao sensível. In: A cultura do romance. Organização Franco Moretti. Tradução Denise Bottmann. São Paulo: Cosac Naify, 2009.
Carlo Ginzburg. Decifrar um espaço em branco. In: Relações de força: História, retórica, prova. Tradução Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.