Quarta, 01 Janeiro 2025

Longe de minha estante, tive de recuperar na Internet algo que o historiador italiano Carlo Ginzburg escreveu sobre o distanciamento em Olhos de Madeira, seu livro sobre o tema, no qual a distância, espacial ou temporal, é tratada como uma aliada do pensamento crítico.

 

Em entrevista publicada no Jornal do Brasil de 18 de agosto de 2001, quando o livro era lançado no Brasil, o intelectual conta, nas palavras do correspondente Araujo Netto, que o distanciamento seria o “antídoto necessário contra a banalização da realidade”.  

 

I

Pensei em Ginzburg ao tomar contato com as Cartas Marroquinas (na tradução deste colunista), livro escrito pelo espanhol José de Cadalso (1741-1782) e publicado postumamente em 1789. O material do livro consiste em cartas trocadas entre três personagens: o árabe Gazel, que vive em Madrid, seu amigo espanhol Nuño Nuñez e o mouro Ben-Beley, mestre do primeiro e destinatário na África da maior parte da correspondência.

 

Vale dizer que o gênero epistolar, comum no século XVIII, tinha o objetivo de fazer crítica política e social por meio de uma imaginária correspondência de um viajante estrangeiro que relata a seus conterrâneos os costumes da terra a ser criticada. Foi o que fizeram, entre outros, o explorador francês Marc-Joseph Marion du Fresne com seus Casos sérios e divertidos de um Siamês (1707) e Montesquieu, filósofo de mesma nacionalidade, com suas Cartas Persas (1721). O procedimento permite ao autor alterar a perspectiva de quem lê a obra ao mesmo tempo em que o uso de um pseudônimo lhe permite uma liberdade, digamos, psicológica. Desnecessário dizer que, ainda que fictícias, essas cartas viajavam por mar, de porto em porto.

 

Antes delas, porém, um resumo: Cadalso, de família nobre, seguiu carreira na armada da Espanha, aliada da França nas guerras contra a Inglaterra, tendo chegado a coronel. Nasceu em Cádiz, viajou por Inglaterra, França, Alemanha e Itália, viveu boa parte da vida em Madrid, com passagens por Salamanca e Extremadura e morreu em combate em 27 de fevereiro de 1782, quando seu país retomava dos ingleses o controle de Gibraltar e Menorca. Militar por patriotismo, Cadalso cultivava o gosto pelas letras, sendo autor também de poesia e teatro e até leitor e comentador do Dom Quixote de Miguel Cervantes.

 

Retrato do espanhol José de Cadalso

 

II

Da primeira carta de Gazel a Ben-Beley, começamos com uma bela imagem portuária em que o viajante roga pela saúde de seu conselheiro:

 

Que Alá te conserve em uma velhice sadia e alegre, fruto de uma juventude sóbria e contida, e da África prossiga me enviando na Europa suas saudáveis advertências. A voz da virtude cruza os mares, frustra as distâncias e penetra o mundo com excelência que a luz do sol, pois esta última cede parte de seu império às trevas da noite e aquela não se escurece em tempo algum. Que será de mim em um país mais ameno e mais livre que o meu, se não me segue a ideia de tua presença, representada em teus conselhos?

 

Na mesma carta, Gazel traça a “metodologia” de seu afastamento, tão distante no tempo e no espaço das pesquisas de Ginzburg, mas próxima de seu espírito inquiridor:

 

Encontro-me vestido como estes cristãos, levado a muitas de suas casas, possuindo seu idioma e em amizade muito estreita com um cristão chamado Nuño Nuñez, homem que passou por muitas vicissitudes da sorte, realizações e modos de vida. Encontra-se agora separado do mundo e, segundo sua expressão, encarcerado dentro de si mesmo. Em sua companhia as horas passam com gosto já que procura me instruir em tudo que pergunto; e o faz com tanta sinceridade que algumas vezes me diz: disto não entendo; e outras: disto não quero entender. Com estas proporções tenho ânimo de examinar não só a corte, mas também todas as províncias da península. Observarei os costumes deste povo, notando os que são comuns com outros países da Europa e os que são peculiares. Procurarei me despojar de muitos preconceitos que os mouros temos contra os cristãos e particularmente contra os espanhóis. Anotarei tudo que me surpreenda, para tratar com Nuño e depois dividir contigo o juízo que tenha formado.

 

Desta forma, em nome de Gazel, Cadalso ironiza os apologistas de Espanha, critica a falta de apoio às artes e às ciências e até relata a Ben-Beley o que uma vez ouvira de Nuñez, cujo dicionário de expressões empobrecidas não havia obtido apoio de qualquer nobre ou autoridade.

 

– Em outros tempos, lá quando me imaginava que seria útil e grandioso deixar fama no mundo, trabalhei em uma obra várias partes da literatura que havia cultivado, ainda que com mais amor que sucesso. Quis que saísse sobre a sombra de algum poderoso, como é natural em todo autor. Ouvi de um magnata que todos os autores eram loucos; de outro, que as dedicatórias eram estafantes; de outros, que renegava o inventor do papel: outro zombava dos homens que imaginavam saber de algo; outro me insinuou que a obra que aceitasse seria a letra de uma modinha; outro me disse que fosse ver um criado para tratar deste assunto; outro nem quis me escutar e, resultado disso tudo, tomei a decisão de dedicar o fruto de meus desvelos ao moço que entregava água em casa.

 

Falta de apoio às ciências e às artes, bairrismo sem medidas, peregrinação de realizadores atrás de recursos... Que distância mesmo é esta?

 

Epílogo

Mesmo sendo uma edição barata e para estudantes, o exemplar que encontrei de Cartas Marruecas é rico em informação, com cópia fac-similar da primeira edição, dados biográficos, um resumo da época e do momento literário, apresentação, bibliografia sobre o livro e até sugestões de temas para trabalhos escolares. 

 

Referência

José de Cadalso. Cartas Marruecas. Biblioteca Clássica Ebro. Zaragoza, Espanha: Editorial Ebro, 1978.

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