Por causa de um curso de língua espanhola, até a primeira semana de agosto o Porto Literário será escrito de Salamanca, em Castela, de onde o colunista tentará atuar como um correspondente de literatura e cultura, tratando de buscar livros e atividades que possam enriquecer as divagações e errâncias deste espaço. Com isso, a coluna não ficará melhor nem pior, mas a oportunidade será aproveitada.
I
Pablo Neruda e as carrancas protetoras da poesia
Editada em Málaga, Andaluzia, desde 1936, a revista Litoral, de poesia e pensamento, traz no número 189/190 um especial sobre Pablo Neruda (1904-1973). Com o título Navegações, a edição explora a importância do mar e das viagens na poesia do prêmio Nobel chileno de literatura, assim como este Porto Literário já fez em Três poemas chegam no porto de Santos e As escalas de Pablo Neruda.
O material da revista reúne textos de críticos e conhecedores sobre o próprio Neruda, sete poemas do autor acompanhados por pinturas de Mario Carreño, além de textos de Neruda sobre outros escritores, a exemplo de Federico Garcia Lorca. O próprio Lorca, assim como Pablo Neruda, colaborou para a revista.
Porto Literário destaca uma seleção de fotografias de Luis Poirot, Retratando a ausência, com imagens da casa de Pablo Neruda em Isla Negra tiradas em 1982 para um perfil sobre o autor. Entre os objetos fotografados estão algumas carrancas, cabeças de proa utilizadas em barcos desde a antiguidade para afugentar os maus espíritos e proteger a viagem que o poeta acumulava em sua residência. Podiam ser em forma humana ou de animais. Sobre La María Celeste (imagem abaixo), uma de sua coleção, Neruda escreveu:
É de cor escura, talhada em encina [uma árvore]; com tantos anos e viagens virou morena para sempre. É uma mulher pequena que parece voar com os sinais do vento talhados em suas belas vestimentas do Segundo Império.
De outra, La Cymbelina, encontrada na praia, escreveu o seguinte soneto:
A menina de madeira não chegou caminhando:
ali de repente esteve sentada no piso,
Velhas flores do mar cobriam sua cabeça,
seu olhar tinha tristeza de raízes.
Lá ficou olhando nossas vidas abertas,
o ir e ser e andar e voltar pela terra,
o dia desbotando suas pétalas graduais.
Vigiava sem nos ver a menina de madeira.
A menina coroada pelas ondas antigas,
ali olhava com seus olhos derrotados:
sabia que vivemos em uma rede remota.
de tempo e água e ondas e sons e chuva,
sem saber se existimos ou se somos seu sonho.
Esta é a história da moça de madeira.
De La Sirena (sereia), escreve o seguinte:
E no mar resvalando, a barca sacudia uma ramagem de fogo marinho, de vaga-lumes, uma onda inumerável de olhos que despertavam uma vez e voltavam a dormir em seu abismo.
Ainda que extremamente funcional para a navegação (na verdade, para a não navegação), uma âncora abandonada, “pesado fragmento fugitivo”, é motivo poético para a nostalgia e o abandono, tanto que a palavra âncora nem aparece:
Esteve lá, um pesado
fragmento fugitivo,
quando morreu o barco
a deixaram
ali, sobre a areia,
ela não tem morte:
pó de sal em seu esqueleto,
tempo na cruz de sua esperança,
foi-se enferrujando como a ferradura
afastada de seu cavalo,
caiu o esquecimento em sua soberania.
Estes e outros textos de Neruda, a edição informa que selecionou das memórias Confesso que vivi e de trabalhos esparsos em prosa e poesia. “Homem oceânico”, viajante, tendo passado por dezenas de países como poeta, ativista comunista representante do governo chileno, ao ter levado as carrancas para sua casa, Neruda acaba transformando as antigas protetoras da navegação também em protetoras da poesia. É uma das leituras possíveis deste trecho sobre La Micaela, nesta foto de Antonio Quintana ao lado de Matilde Urrutia, esposa e musa de Neruda:
Oh, grande máscara, beleza estragada, diretora do navio, reitora das rotas! Dama marítima de madeira salpicada, amo tuas mãos feridas pelo mar, tua cabeleira imóvel sobre teus olhos que escrutam o horizonte redondo, os limites, a primavera marinha. Aqui foi detido teu reino: tua última nave é a minha pequena vida.
Referências
Navegaciones. Revista Litoral. Direção de José Maria Amado e Lorenzo Saval. Málaga, Espanha. Edição 189-190, 1991.