Em 03 de novembro de 2003 estava em uma aula em que anotei do professor Júlio Pimentel Filho algo que Jorge Luis Borges havia dito sobre o ato da escrita: “amanuência do engenho alheio”. O escritor argentino deixou algumas considerações sobre o tema da autoria, talvez até porque se considerava, sobretudo, um leitor. Seu ensaio Kafka e seus percussores, por exemplo, traça um panorama de autores que sugeriram elementos para que a ficção do autor tcheco emprestasse para a realidade o adjetivo kafkiano.
Muito já se escreveu sobre esse papel da acepção de Borges, certamente a central, para a expressão “amanuência do engenho alheio”, que nos leva a perceber o estilo de cada autor como um jogo de apropriações, heranças e achados reorganizados.
Mas neste espaço portuário gostaria de interpretar a expressão de forma mais literal: se o espanholismo amanuência está para a escrita; escritor está para amanuense, este escrevente e copista das repartições, aduanas e alfândegas. É por meio dos artistas amanuenses que a arte migra e, não é raro, consegue se desenvolver com mais originalidade do que em seu espaço de origem. O Porto Literário de hoje é sobre três destes tráficos.
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É dos Diálogos do próprio Borges com Ernesto Sabato que se colhe o primeiro. Ao final da primeira das sete conversas gravadas pelo jornalista e escritor Orlando Barone entre 14 de dezembro de 1974 e 15 de março de 1975, eles tratam do prestígio da língua francesa entre os alemães nobres dos séculos XVII e XVIII e de como isso abre espaço para que o romantismo, francês de nascimento, tenha a Alemanha como pátria estética:
BARONE: Quando eu estava preocupado por causa do gravador, cheguei a ouvir alguma coisa sobre a linguagem francesa e as traduções. Escutei um nome: Frederico, o Grande.
SABATO: Eu estava dizendo ao Borges que o prestígio da França nos séculos XVII e XVIII foi tão grande que Frederico II leu a metafísica de Christian Wolff em francês, não em alemão, sua língua de origem.
BORGES: É que Frederico II tinha um conhecimento rudimentar do alemão. Considerava-o uma língua bárbara.
SABATO: É, o alemão não tinha prestígio suficiente como língua culta. O romantismo alemão se impôs graças ao impulso da França e, no entanto, é um movimento essencialmente germânico. É a dialética de certos processos espirituais: nós nos conhecemos por intermédio de outros. Aqui, Echeverría introduziu os românticos europeus e, assim, Alberdi [Juan Bautista Alberdi, escritor, diplomata a político argentino, ativista liberal do final do século XIX] pôde perceber a beleza do ceibo [flor nacional argentina]. Nada menos.
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No segundo a Alemanha é a fonte. Ali que surge em torno da metade do século XX a Neue Musik, com a qual Gilberto Mendes e outros compositores brasileiros teriam contato pessoal pelos seminários da Escola de Darmstadt. Mendes conta como nos anos de 1955 e 1956 começava a conhecer partituras de Karlheinz Stockhausen ou Pierre Boulez. Depois, as viagens para a Alemanha e, em 1963, junto com Rogério Duprat, Willy Correa de Oliveira e outros, assina o Manifesto Música Nova, “porque achávamos que ela [a música brasileira] estava atrasada em relação ao avanço que a música tinha tido”, disse o compositor em uma entrevista a Camila S. Oliveira, do Unisanta Online.
Mas não foi só a tradução de neue musik para música nova que marcou a importação da corrente. Enquanto na Alemanha, os compositores desta nova forma de música faziam suas peças a partir das letras de poemas de forma convencional, no Brasil, os compositores do movimento logo deram início a uma aliança estética com o movimento concretista, cujos poemas forneciam a matéria-prima ideal para a “música aleatória, microtonal, música estruturada parâmetro por parâmetro segundo os princípios do serialismo integral, não periódica, não discursiva, música com a introdução do ruído no contexto sonoro (...)”. É o caso de nascemorre, poema de Haroldo de Campos musicado por Gilberto Mendes entre o final de 1962 e o começo de 1963, ou Beba Coca-Cola, de Décio Pignatari, musicado em 1967 (veja e ouça o nascemorre no blog Lunik9 e assista a um clipe do segundo aqui).
Nesse momento, sobretudo eu e o Willy Correa de Oliveira, estávamos criando um tipo de música, nova não só com relação à música brasileira, mas também nova, original, com relação à própria música que era feita na Europa e nos Estados Unidos. Era o que fazíamos em cima dos poetas concretos, a experiência com uma música de fonemas e microtonalismos, pensada em termos de música eletrônica, porém, para vozes corais. Os europeus e norte-americanos não faziam essa música, estavam voltados a outros tipos de experiências; eles nem tinham à sua disposição textos da qualidade daqueles que a poesia concreta nos oferecia. Era uma invenção nossa, original, portanto, não uma imitação do que se fazia na Europa, que é o que sempre dizem das obras de vanguarda terceiro-mundistas, sobretudo as latino-americanas. Por exemplo, o aproveitamento que eu fiz de estalidos de língua entre os dentes, no céu da boca, e outras sonoridades que descobri para compor meu Asthmatour (de 1971); somente alguns anos depois (1978-1979) Stockhausen faria o mesmo em seus Coros Invisíveis.
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Outro caso é contado pelo historiador Carlo Ginzburg no ensaio Além do exotismo: Picasso e Warburg, no qual relata como o contato com a arte primitiva de povos africanos catalisa uma série de estudos anteriores em que Picasso pesquisava proporções justamente para subvertê-las e dar forma ao cubismo. Ele fez isso em um momento em que exotismo e racismo eram faces da mesma moeda do imperialismo colonial da virada do século XIX para o século XX, em que fotos etnográficas de grupos de mulheres africanas sem roupas serviam mais a apetites eróticos que aos da pesquisa. Foi graças ao impulso criador, conta Ginzburg, que Picasso escapou destes dois obstáculos.
Para acabar, fico com o que o historiador conclui sobre o trabalho do pintor e tomo a liberdade de estender esta conclusão a todos os amanuenses das letras e das artes:
A capacidade de Picasso de transformar as coerções em desafios e os desafios em escolhas era, certamente, fora do comum. Mas coerções, desafios e escolhas fazem parte da vida de todos. A atormentada gênese de Demoiselles d’Avignon pode ser considerada como um modelo, simplificado (como é próprio dos modelos) pela ação humana em geral.
Referências
Júlio Pimentel Pinto. A leitura e seus lugares. São Paulo: Estação Liberdade, 2004.
Jorge Luis Borges e Ernesto Sabato. Diálogos. Compilação Orlando Barone. Tradução Maria Paula Gurgel Ribeiro. São Paulo: Globo, 2005.
Gilberto Mendes. Uma odisséia musical: dos Mares do Sul à elegância por / art déco. Apresentação Haroldo de Campo. São Paulo: Edusp, 1994.
Gilberto Mendes. Viver sua música: Com Stravinsky em meus ouvidos, rumo à avenida Nevskiy. São Paulo e Santos: Edusp e Realejo, 2008.
Carlo Ginzburg. Além do exotismo: Picasso e Warburg. In: Relações de força: História, retórica, prova. Tradução Jônatas Batista Neto. São Paulo: Companhia das Letras, 2002.