A capa de uma edição recente do PortoGente trazia uma foto de Berenice Kauffman Abud em que um casco vermelho de navio e sua ferrugem se encontram em primeiro plano. Na galeria da fotógrafa (Ships and their features...) conhecemos uma série maior, com closes de lemes, âncoras e cascos, sempre tendo a ferrugem como figurante.
As fotos de Berenice formam um indício a mais de uma nova configuração da relação entre o porto e a cidade nos últimos anos: o crescimento da paisagem da Ponta da Praia como espaço para a observação de navios. Isso vem ocorrendo devido a dois fatores: a redução dos espaços de observação no cais concedido à operação privada e o sucesso das temporadas de transatlânticos que atraem milhares de pessoas para as muretas, restaurantes e pontes da região a cada partida de Cruzeiro.
Na poesia, essa mesma configuração ocorre em Da Ponta da Praia, poema de Alberto Martins:
Tão perto de tocar
o instante quase-já
de toda viagem;
no entanto, rente à praia
é tanto rente ao fundo
que só percebo
o espesso casco negro
brilhando à tona
um segundo. E depois?
Viagem houve de fato?
Ou tudo não passa
de um golpe
do acaso?
Mas –
e o casco?
É úmido. Está coberto
de cracas e a ferrugem
que rói as chapas
rói a carga
é visível
da Ponta da Praia
a olho nu.
Da calçada vejo
a quina de aço
– feito cunha –
na paisagem:
a Pouca Farinha
o forte em ruínas
o Góes... e por aí vai,
devorando a outra margem.
Boa viagem.
Apesar da potência das lentes objetivas e sua capacidade de aproximação, a presença da ferrugem nas fotos que nos marca e remete à Ponta da Praia, único local da cidade onde se pode hoje ver ferrugem dos cascos, enquanto da Avenida Portuária, só a ponta dos mastros nos é permitido ver por cima dos telhados dos armazéns.
Referências
Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.