Em alguns dos textos publicados neste Porto Literário, tive a oportunidade de comentar questões relativas ao estudo da literatura, principalmente quanto ao preconceito dos que acreditam o estudo sobre a criação literária possa prejudicar o amor “puro” pelas letras.
Textos de dois professores me trouxeram novas reflexões sobre o tema. Um deles é Tzvetan Todorov (1939), lingüista búlgaro radicado na França desde 1963, autor de A Literatura em Perigo, de 2007, publicado agora em 2009 em português pela Difel. O outro é Uraniano Mota, escritor de Recife que em texto recente na revista eletrônica NovaE, A salvação pela literatura, divide com o leitor algumas experiências como professor de literatura para adolescentes.
Primeiro, aos títulos dos textos, que, apesar de sentidos inversos, adotam a mesma perspectiva, sendo complementares: Todorov manifesta sua preocupação em que o ensino de técnicas de análise da literatura ocupe o lugar do ensino e da discussão das próprias obras e aponta como o mergulho nas obras dá lugar ao ensino das técnicas por meio da análise dos currículos desde o equivalente ao colegial, passando pelos processos seletivos para os cursos superiores e o próprio ensino e pesquisa nos meios superiores.
Nestes espaços, dos quais a influência francesa é sentida enormemente nos estudos literários no Brasil, o estudo de literatura é moldado, conforme o Boletim Oficial do Ministério da Educação de 2000, para “formar a reflexão sobre: a história literária e cultural, os gêneros e os registros, a elaboração da significação e a singularidade dos textos, a argumentação e os efeitos de cada discurso sobre seus destinatários”; ou ainda refletir sobre a “produção e recepção dos textos” e a “apreciação de maneira mais analítica” dos “elementos da argumentação”. O que, para Todorov, é um erro: “O conjunto dessas instruções baseia-se, portanto, numa escolha: os estudos literários têm como objetivo primeiro o de nos fazer conhecer os instrumentos dos quais se servem” (grifo meu). Isto é, são ensinadas receitas, mas não se prova o bolo. Seu diagnóstico segue abaixo:
Ler poemas e romances não conduz à reflexão sobre a condição humana, sobre o indivíduo e a sociedade, o amor e o ódio, a alegria e o desespero, mas sobre as noções críticas, tradicionais ou modernas. Na escola, não aprendemos acerca do que falam as obras, mas sim do que falam os críticos.
Talvez este desvio seja uma das causas que alimentem o preconceito contra os estudos sobre a literatura, geralmente uma visão conservadora que deixa a poesia e a ficção em posição de objetos de fruição, de lazer, e não de entendimento do mundo.
II
Da outra ponta da perspectiva, Uraniano Mota trata em seu texto da recepção do ensino literário em sua experiência no ensino do segundo grau, em que a opressão do mundo das necessidades (“O que eu ganho com isso, professor?”) enche de obstáculos o ensino da literatura (creio que esse utilitarismo do ensino é de alguma forma também parte do problema apontado por Todorov).
Após narrar suas agruras tanto como professor de adolescentes de classe média como de jovens da periferia, Mota, porém, nos traz esperança. E conta como uma “jovem míope, tímida, com 19 anos”, sem saber alemão, conseguiu uma bolsa de estudos de 600 euros por mês, mais universidade, casa e alimentação na Alemanha, porque contou em seu teste, como foi salva pela literatura ao descobrir Goethe. Ainda que tenha um aspecto utilitário (ganhar uma bolsa), isso só foi possível porque a aluna antes foi salva. E é Todorov que explica como isso funciona:
Mais densa e eloqüente que a vida cotidiana, mas não radicalmente diferente, a literatura amplia o nosso universo, incita-nos a imaginar outras maneiras de concebê-lo e organizá-lo. Somos todos feitos do que os outros seres humanos nos dão: primeiro nossos pais, depois aqueles que nos cercam; a literatura abre ao infinito essa possibilidade de interação com os outros e, por isso, nos enriquece infinitamente. Ela nos proporciona sensações insubstituíveis que fazem o mundo real se tornar mais pleno de sentido e mais belo. Longe de ser um simples entretenimento, uma distração reservada às pessoas educadas, ela permite que cada um responda melhor à sua vocação de ser humano.
Referências
Tzvetan Todorov. A Literatura em Perigo. Tradução Caio Meira. Rio de Janeiro: Difel, 2009.
Uraniano Mota. A salvação pela Literatura. NovaE. Acessado em http://www.novae.inf.br/site/modules.php?name=Conteudo&pid=1243