Em uma série de cartas enviadas à sua esposa entre junho e novembro de 1907, o poeta alemão Rainer Maria Rilke descreve o impacto em sua sensibilidade artística causado pela observação contínua de pinturas do francês Paul Cézanne (1839-1906). Morando em Paris à época da exposição de Cézanne no Grand Palais, Rilke visitaria praticamente todos os dias as obras. Esse exercício contínuo de apreciação é um exemplo de como as diversas formas de arte podem influenciar umas às outras. Em muitos momentos da correspondência, Rilke aponta como a contemplação das artes plásticas vinha afetando sua escrita poética, anotações que valem também para o exercício crítico e literário.
Na apresentação de Cartas sobre Cézanne, Pedro Süssekind, comenta o material, que foi selecionado pela própria esposa de Rilke, Clara, ela também artista:
Trata-se de um texto guiado pelas preocupações e pelo aprendizado de seu autor, cuja escrita é cheia de uma atenção sutil, seja nas considerações da arte e do processo de criação, seja quando fala de coisas simples: uma romã comprada recentemente, três ramos de urze, as ruas da cidade. Descrevem-se impressões, desenvolvem-se pensamentos, de modo espontâneo, mas com o empenho de um escritor cuidadoso, que chegaria a aproveitar alguns trechos das cartas, quase literalmente, em seu romance [Os cadernos de Malte Laurids Brigge]. Expõe-se o ambiente de Paris, onde Rilke se encontrava, dividindo seu tempo entre a preparação da monografia sobre Rodin, as anotações para seus trabalhos, e as reproduções dos quadros de Van Gogh, mostradas por uma amiga alemã.
De correspondência de Rilke fica a correlação entre a descrição poética da pintura e a descrição pictórica do mundo, isto é, uma descrição das coisas que passa mais pelas sensações do que pelo entendimento, fruto do aprendizado das visitas quase diárias à exposição. Do primeiro tipo, temos o seguinte trecho na carta de 12 de outubro, em que comenta a ida à exposição no dia anterior acompanhado pela pintora Mathilde Vollmoder:
Natureza morta com garrafa de hortelã-pimenta
Natureza morta com maçãs e laranjas
Nas primeiras [pinturas de Cézanne] a cor era algo por si; depois ele a utiliza de um certo modo pessoal, como ninguém antes a utilizava, apenas para fazer com ela a coisa. A cor é totalmente absorvida nessa realização; não há nenhum resto. E a senhorita V. disse, muito significativamente: “É como se estivesse em uma balança: a coisa aqui, e lá a cor; nunca mais, nunca menos do que o equilíbrio exige. Pode ser muito ou pouco: depende, mas é exatamente o que corresponde ao objeto.” A esta última conclusão eu não teria chegado; mas ela é eminentemente certa a reveladora diante dos quadros. Também sobressaiu para mim, ontem, o quanto eles são diferentes, sem ’’estilo’’, destituídos da preocupação com a originalidade, seguros de não se perderem em cada aproximação com a natureza multiforme, e, muito mais, de descobrirem na variedade exterior, com seriedade e consciência, a inesgotabilidade interior. Tudo isso é muito belo...
Ou ainda neste outro trecho da carta do dia seguinte:
Hoje, estive de novo olhando seus quadros: é notável o ambiente que produzem. Sem considerar nenhum isoladamente, ficando em pé bem no meio, entre as duas salas, sentimos sua presença reunindo-se em uma realidade colossal. Como se estas cores nos livrassem de uma vez por todas da indecisão. A boa consciência deste vermelho, deste azul, sua veracidade simples nos educa; e se nos colocarmos de maneira mais disponível diante delas, é como se fizessem algo por nós.
Da apreciação dos quadros, as descrições de cores e formas da pintura saltam para a observação da realidade, principalmente a paisagem, como na mesma carta de 13 de outubro:
... de novo a mesma chuva que já descrevi tantas vezes para você; como se o céu tivesse levantado os olhos com a claridade, só por um momento, para logo em seguida retomar a leitura nas monótonas linhas de chuva. Mas não se esquece tão facilmente que, por baixo do verniz opaco, está aquela luz e aquela profundidade que víamos ontem: agora sabemos disto, pelo menos.
Bem de manhãzinha li sobre o seu outono, e todas as cores que você tinha trazido para a sua carta ressurgiram em meu sentimento e preencheram minha consciência até a borda, com fortalecimento e irradiação. Enquanto eu admirava aqui, ontem, o outono de luz diluída, você ia pelo outro, o de nossa terra, que é pintado sobre madeira vermelha, assim como este aqui sobre seda.
Em outro momento, anterior, da carta de 2 de outubro, a preocupação com a luz é tanta que Rilke escreve como se fosse um pesquisador impressionista:
... os dias aqui têm algo de chuvosos e nublados, com aqueles trechos muito claros que às vezes interrompem o inverno tardio; você sabe a quais me refiro: são aqueles em que dizemos: então, nada mais de passeios de trenó; ou: acabou-se a patinação; ou: como naquela tarde, quando eu estava à janela, lá no alto, na casa dos Seggerns, e você voltou da patinação em Bremen, inesperadamente concluída. Nuvens, nuvens velozes, vento, chuvas rápidas e, de um elevada clareira, de repente o sol lançado, como se fosse um refletor, forte, concentrado, ligeiro, sobre qualquer coisa molhada, ofuscante de tão branca, e em todas as janelas claridade e céu. A sugestão foi tão grande e tão bem calculada, que eu realmente tive nestes dias, com freqüência, o sentimento de ter atravessado um inverno frio, e não o verão parisiense, que não parecia ter deixado lembrança alguma...
Na carta de 13 de outubro, Rilke registra a influência de Cézanne em sua realização poética:
Se eu voltasse para vocês, com certeza veria de modo novo e diferente a exuberância do pântano e da urze, o verde-claro suspenso dos prados e as bétulas; é verdade que essa transformação, posto que já a vivenciei e compartilhei por completo, trouxe à tona uma parte do Livro das Horas [1905]; contudo, a natureza era para mim, então, um ensejo geral, uma evocação, um instrumento em cujas cordas minhas mãos se reconheciam; eu ainda não sentava diante dela; me deixava levar pela alma que dela emanava; ela incidia sobre mim com sua vastidão. Com sua grande e exagerada existência, como o profetizar vinha a Saul; exatamente assim. Eu caminhava ao redor e via, mas não via a natureza, e sim a história que ela me inspirava. Teria aprendido muito pouco, naquela época, diante de Cézanne e de Van Gogh. Por isso, por Cézanne ter tanto a ver comigo agora, noto como me tornei diferente.
Nesse aprendizado de observação, base do exercício crítico, Rilke se refere algumas vezes à consciência (três vezes nos trechos transcritos acima) como forma de apreensão. É uma consciência hoje rara, feita de paciência, de acúmulo de impressões, de retornos às obras, de diálogo (tanto o da correspondência como o da visita em conjunto com a senhorita V), atributos sem valor na sociedade atual, on demand, da disponibilidade imediata e da imposição das normas simplificadoras da eficiência comunicativa.
Epílogo
Nos dois últimos finais de semana (16, 17, 23 e 24 de maio), o Athos Núcleo Artístico apresentou em sua sede Ciclos – um olhar diferenciado, um conjunto de performances. Sem analisar isoladamente qualquer uma das coreografias, o que se sobressai é o uso inteligente do espaço, desde a interação com o público ainda na área externa até a configuração interna em que salas de ensaios, corredores, banheiros e quartos são utilizados como espaços cênicos. Mais um indício de como os grupos artísticos da cidade vem impondo a criatividade para vencer a pasmaceira e inércia dos gestores públicos da cultura.
O Athos Núcleo Artístico fica na Rua Guaiaó, 147, no bairro da Aparecida. O telefone é (13) 3301-7001 e o correio eletrônico é [email protected]
Referência
Rainer Maria Rilke. Cartas sobre Cézanne. Tradução e prefácio Pedro Süssekind. Rio de Janeiro: 7Letras, 2006.