Quarta, 01 Janeiro 2025

O texto é pequeno, não tem mais de três páginas, e descreve o impacto dos portos na sensibilidade das cidades que os comportam. No caso, o porto é Marselha, na França, e o texto é Dois planos, do crítico cultural alemão Siegfried Kracauer, publicado originalmente em 1926 pelo jornal Frankfurter Zeitung, e que chega ao público brasileiro na coletânea O ornamento da massa, lançado agora em 2009 pela editora Cosac Naify.

 

I

O título Dois Planos se refere às duas partes do texto: A baía e O quadrado. O primeiro remete diretamente à atmosfera portuária da cidade, que cresceu em torno do retângulo do velho porto.

 


Clique na figura acima para abrir o mapa em tamanho maior

 


Visão aérea do porto francês

 

Para o crítico, a disposição da cidade em torno do retângulo faz de Marselha “um anfiteatro deslumbrante”.

 

Marselha, um anfiteatro deslumbrante, se eleva ao redor do retângulo do velho porto. As três margens da praça, pavimentadas pelo mar, cuja profundidade adentra a cidade, têm como bainhas três fileiras uniformes de fachadas. Em frente à entrada da baía, a Cannebière, a rua de todas as ruas, quebra a luminosidade plana da praça, estendendo o porto até o interior da cidade.

 

A metáfora do anfiteatro faz da relação entre a cidade e o porto um espetáculo encenado na praça de onde sai a avenida que leva o porto ao interior e para onde apontam as torres das igrejas e das colinas fazendo desse palco “o ponto de fuga de todas as perspectivas”. Transatlânticos, barcos de pesca, edifícios, avenidas e ruas formam o público dessa “arena” que é a baía retangular. Dos dois tipos de embarcação, o autor extrai o perfil cosmopolita da cidade portuária e suas ganas de partir:

 

A cidade mantém suas redes de pesca abertas. O resultado da pescaria é coletado nos novos tanques do porto que, juntamente com a linda da costa, descrevem uma poderosa trajetória. A chegada e a partida dos transatlânticos até seu desaparecimento no horizonte constituem o polo da vida. A desolação das paredes dos armazéns é uma ilusão: o príncipe do conto de fadas veria a sua fachada. Nas cavidades esponjosas do bairro portuário a fauna humana formiga a nas poças o céu está imaculado.

 

A nostalgia portuária se avoluma em torno da praça que converge as perspectivas daqueles que acompanham os navios até o horizonte e esta arena, continua o crítico, se transforma em tribunal de “assentos invisíveis ao redor do quadrado” de onde um veredicto, ainda que palpável, nunca é proferido.

 

 

II

Apesar da finalidade jornalística dos textos de Kracauer para o Frankfurter Zeitun, a riqueza de Dois Planos está em sua qualidade literária. É a expressão do autor que enfatiza a relação porto-cidade, e nunca uma fonte oficial, estudo portuário ou sociológico. É o que promete o autor logo na primeira frase (“Marselha, um anfiteatro deslumbrante, se eleva ao redor do retângulo do velho porto.”). O tom lírico deste artigo, acima da média dos demais textos da coletânea, tem origem na posição do autor em relação à cidade, que é a do flaneur, o errante urbano, aquele para quem as ruas e avenidas da cidade são, antes de meio de comunicação e ligação, um labirinto simbólico. “Aquele que encontrou o lugar não o procurou” é a dica que, no meio do texto, o autor deixa ao seu leitor.

 

Epílogo

A edição traz um pequeno perfil de Kracauer (1889-1966), arquiteto de formação que abandonou a profissão em 1920 para se tornar jornalista cultural. Para o mesmo Frankfurter Zeitung, colaboravam intelectuais do quilate de Walter Benjamim e Teodor Adorno, de quem foi amigo, além de nomes como Heinrich e Thomas Mann, Max Weber, Alfred Döblin e Stefan Zweig. Com a chegada de Adolf Hitler ao poder em 1933, Kracauer foge para a França e, em 1941, exila-se nos Estados Unidos, para onde também iria Adorno. Zweig fugiria para o Brasil, onde comete suicídio, mesmo destino de Benjamin, ainda durante a guerra, em 1940, quando, ao tentar cruzar os Pirineus entre França e Espanha, com medo de ser entregue à Gestapo, acaba por tirar a própria vida. Já Kracauer trabalharia nos Estados Unidos até o final da vida, atuando como pesquisador em instituições como o Museu de Arte Moderna de Nova York ou a Universidade de Columbia.

 

Referência

Siegfried Kracauer. Dois planos. O ornamento da massa. Ensios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

Curta, comente e compartilhe!
Pin It
0
0
0
s2sdefault
powered by social2s

topo oms2

Deixe sua opinião! Comente!