Quarta, 01 Janeiro 2025

Há um episódio da história mexicana, a invasão do campus da universidade pelo exército em 1968, que é referido duas vezes na ficção de Roberto Bolaño. Narrada por meio do diário de um de seus integrantes, a primeira parte do romance Os detetives selvagens acompanha o dia-a-dia de um grupo de poetas da Cidade do México dos anos 70. Em determinado momento, uma das centenas de conversas da turma se volta para Auxilio Lacouture, poeta uruguaia que resistiu à invasão isolada em um banheiro feminino de um dos departamentos, ficando lá por semanas, bebendo água da pia e comendo bolinhos de papel higiênico até que o controle da instituição voltasse às mãos da administração universitária. Poucos parágrafos depois, a narrativa deixa para trás o assunto e se volta para outras tramas.

 

O que é episódico nas aventuras dos poetas do grande romance de Bolaño passa a centro narrativo na novela Amuleto, lançada no final de 2008, da qual dei notícia em Os novos nomes do mal-estar na literatura contemporânea. Nessa nova história, o autor chileno dá voz à própria Lacouture, que narra suas memórias da mãe da nova poesia mexicana de autores do Arturo Belano (alter ego do autor) e Ulises Lima, os detetives selvagens protagonistas do livro anterior. Numa organização temporal de vazantes e cheias da maré da memória, ela conta, não sabemos exatamente a quem, seus papéis de criadora poética (breve), mito estudantil (a resistência com bolinho de papel higiênico), amiga dos poetas desconhecidos e mão-de-obra braçal da academia, pois sobrevivia de bicos nos departamentos redigindo teses, secretariando diretores e fuçando arquivos.

 

Ao contar sua história Lacouture nos leva a testemunhar não só um panorama da intelectualidade do DF (Distrito Federal), como todos se referem à capital, como uma visão microscópica dessas camadas que compõem o grupo: poetas estudantes, poetas independentes, universitários das letras, professores, poetas consagrados, grupos literários, mercado editorial. Na simples lembrança que abre o capítulo 6 temos uma significativa amostra de seu poder de capilaridade:

 

O amor é assim, meus amiguinhos, digo eu, que fui a mãe de todos os poetas. O amor é assim, a gíria é assim, as ruas são assim, os sonetos são assim, é céu das cinco da manhã é assim. Já amizade, não é assim. Na amizade você nunca está sozinho.

Fui amiga de León Felipe e de dom Pedro Garfias, mas também fui amiga dos mais jovens, daqueles meninos que viviam na solidão do amor e na solidão da gíria.

Um deles era Arturito Belano.

Eu o conheci, fui sua amiga e ele foi meu poeta jovem favorito, ou o meu poeta jovem preferido, embora não fosse mexicano e a denominação “poeta jovem”, “jovem poesia” ou “nova geração” fosse empregada basicamente para se referir aos jovens mexicanos que tentavam assumir o lugar de Pacheco, ou do conspícuo grego de Guanajuato, ou daquele gordinho que trabalhava na Secretaria de Governo à espera de que o governo mexicano lhe desse alguma embaixada ou algum consulado, ou dos Poetas Camponeses, que já não me lembro se eram três, quatro ou cinco vaqueiros do apocalipse nerudiano, e Arturo Belano, apesar de ser o mais moço de todos ou o mais moço por um tempo, não era mexicano, logo não entrava na denominação “poeta jovem” nem “jovem poesia”, uma massa informe mas viva cuja meta era sacudir o tapete ou a terra fecunda onde pastavam como estátuas Pacheco, o grego de Guanajuato, os Aguascalientes, ou Irapuato, e o gordinho a quem o passar do tempo havia transformado num submisso gordo seboso (como costuma acontecer com os poetas), e os Poetas Camponeses cada dia mais e melhor instalados (que digo, aposentados, aparafusados, enraizados desde o início de seu tempo) na burocracia (administrativa e literária). E que os poetas jovens ou a nova geração pretendiam era dar uma sacudida geral e, chegada a hora, destruir essas estátuas, salvo a de Pacheco, o único que parecia escrever de verdade, o único que não parecia funcionário. Mas, no fundo, eles também estavam contra Pacheco. No fundo eles tinham necessariamente de estar contra todos. De modo que quando eu lhes dizia mas José Emilio é encantador, é terníssimo, é fascinante e além do mais um verdadeiro cavalheiro, os poetas jovens do México (e Arturito entre eles, mas Arturito não era um deles) olhavam para mim como se dissessem o que está dizendo essa louca, o que está dizendo essa assombração saída diretamente do inferno do banheiro feminino da Faculdade de Filosofia e Letras, e diante de uns olhares assim a gente geralmente não sabe o que argumentar, menos eu, claro, que era a mãe de todos eles e que nunca me intimidava. (pp. 47-48)

 

Nos parágrafos de Auxilio Lacouture não encontramos informações oficiais sobre as universidades, nem estudos sobre a obra de poetas e intelectuais, não há resenhas. O que está em jogo para a narradora é a rede de afetos que construiu em sua vida no DF (“eu, uma poetisa uruguaia mas que amava o México mais que tudo”) e é a partir daí, da notícia particular, que podemos inferir o quadro social. Até mesmo o contato com o exército durante seus dias de resistência é pessoal, como vemos nesse (não) confronto entre Auxilio e um soldado que revistava o prédio e se aproximava do banheiro onde ela se escondia:

 

E eu, pobre de mim, ouvi algo semelhante ao rumor que o vento produz quando sopra e corre entre as flores de papel, ouvi um florear de ar e água e levantei (silenciosamente) os pés feito uma bailarina de Renoir, como se fosse parir (e, de certo modo, de fato me dispunha a dar algo à luz e ser dada à luz), a calcinha algemando minhas canelas magras, enganchada nos sapatos que eu tinha então, uns mocassins amarelos dos mais cômodos, e, enquanto esperava que o soldado revistasse as latrinas uma a uma e me dispunha, moral e fisicamente, se fosse o caso, a não abrir, a defender o derradeiro reduto de autonomia da UNAM (...).

Resumo da ópera: o soldado e eu permanecemos parados feito estátuas no banheiro das mulheres do quarto andar da Faculdade de filosofia e Letras, e isso foi tudo, depois ouvi suas passadas indo embora, ouvi a porta se fechando, e minhas pernas erguidas, como se decidissem por si mesmas, voltaram à sua antiga posição.

O parto havia terminado. (pp. 27-28)   

 

Essas histórias de Lacouture, ainda mais que narradas em primeira pessoa, dialogam mais com o mito do que com a História ou, ao menos, dialogam com a História onde ela encontra o mito, sobretudo o mito do universo literário que vive à parte da sociedade.

  

Referências

Roberto Bolaño. Amuleto. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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