Quarta, 01 Janeiro 2025

No último dia 15 de abril, o blog Dia-a-Dia do PortoGente registrou mais uma cena em que trabalhadores do porto assistem a um ataque contra as regras de emprego de mão-de-obra no cais santista. Desta vez foram avulsos que presenciaram trabalhadores não inscritos no Órgão Gestor de Mão-de-Obra (Ogmo) atuando no Terminal 36. O Porto Literário vai articular a postagem com cenas do romance Navios Iluminados, em que estivadores se encontram na mesma posição. Entre aspas, o texto do blog; em itálico, a citação do livro:

 

“Conflito sindical no Porto de Santos

O Porto de Santos (SP) enfrentou mais um conflito sindical nesta quarta-feira (15). Trabalhadores portuários viram seu trabalho ser feito por trabalhadores fora do sistema, no Terminal 36.”

 

O ponto chave do parágrafo é serem os avulsos testemunhas de sua própria substituição. É o que ocorre numa cena do romance Navios Iluminados, de 1937, em que a turma 65 de estivadores presencia pela primeira vez o uso da grab no desembarque do Amberton, cargueiro inglês que trazia carvão de Cardiff. Assim como os avulsos de hoje, também são testemunhas de sua própria substituição:

 

O barco vinha de barriga cheia, a ímpar, a carga beijando a boca da escotilha. A máquina escancarou as mandíbulas medonhas, enterrou os dentes na massa negra e derramou na galera três toneladas de carvão de uma só vez. Chegara recentemente e eram as primeiras experiências que se faziam. O pessoal da turma 65 espiava, curioso, o manejo da bicha. E ante os seus olhos surpresos, o porão foi-se esvaziando rapidamente. O demônio da máquina, sozinha, fazia o serviço de muitos homens, que ali estavam a olhá-la de braços cruzados e faces apalermadas (Navios Iluminados, p. 104). 

 

Os dois próximos parágrafos da postagem se referem às medidas a serem tomadas pelo Sindicato dos Operários Portuários de Santos:

 

“O presidente do Sindicato dos Operários Portuários de Santos, Robson Apolinário, em contato com o PortoGente, reclamou bastante e disse que foi um absurdo ver a ‘desova’ de contêineres em carretas sendo feita por trabalhadores que não eram do sistema (Ogmo).

O sindicalista, que permanecia no local junto com trabalhadores e outros dirigentes sindicais, pediu a presença da Guarda Portuária e da Subdelegacia Regional do Trabalho de Santos. ‘Vamos levar essa questão para a ministra-chefe da Casa Civil, Dilma Rousseff’. Apolinário se refere à reunião com a ministra entre as federações nacionais dos trabalhadores portuários, que estava marcada para acontecer no próximo dia 23, mas foi cancelada e ainda não tem nova data agendada”.

 

No romance, cujo registro de tragédia social deixa poucas páginas para a atuação sindical, a reação é dos próprios trabalhadores:

 

Como tudo corria bem, indo a experiência além da expectativa, [o feitor] Malhado veio despedir os trabalhadores. Podiam ir, serviço só na manhã seguinte. Que ficassem satisfeitos com o meio-dia. Os homens, porém, não se conformaram, nascendo entre eles um zunzum de abelhas irritadas, que foi aumentando com rapidez, até se transformar num protesto firma e peremptório.

– Fora com a máquina, fora! Não pode, não pode! – gritavam.

Turmas de outros armazéns, largando o trabalho, correram para o 23 atraídas pelo tumulto que crescia cada vez mais. O guindaste parou e a grab ficou largada no chão do cais, inerte, como um dragão morto.

(...)

Uma hora mais tarde, chegou a ordem de encostar a grab (logo batizada de “grife” pelo pessoal) e a descarga começou a ser feita pelo processo antigo, com os homens no porão, enchendo as caçambas, paulatinamente. Foi água na fervura. A multidão se dissolveu num minuto, voltando cada um para o seu lugar (Navios Iluminados, pp. 104-105).

 

A cena de Navios Iluminados, ainda que fictícia, condensa para o leitor do romance o processo histórico de mecanização das operações portuárias e da substituição de mão-de-obra. As expressões “o pessoal espiava” e “olhos surpresos”, escritas lá na década de 30, profetizam o “viram seu trabalho ser feito por trabalhadores fora do sistema”. As semelhanças param por aí.

 

Não cabe a esta coluna sugerir que sindicato e trabalhadores tomem a mesma atitude que os estivadores do livro, porque então ocorreríamos em bovarismo (de Madame Bovary, personagem do século XIX criada por Gustave Flaubert, insatisfeita com a realidade, que acreditava que a vida devesse se igualar às histórias dos romances). A contraposição da postagem com as cenas do romance apenas pretende contribuir para a construção de uma perspectiva histórica deste embate. As soluções do atual conflito só podem ser encontradas nos meios hoje disponíveis.

 

Na ficção, os conflitos vividos pelos trabalhadores do porto estão registrados também nos romances Agonia da Noite (1954), de Jorge Amado, Os vira-latas da madrugada (1981) e Barcelona Brasileira (2003), de Adelto Gonçalves, Ensina-me a ler (1989), de Juarez Bahia, ou no poema Santos Revisitado 1927-1967, de Pablo Neruda.

 

Já a história das lutas, mas também da cultura dos trabalhadores do porto, está registrada em livros como Ventos do mar: trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana em Santos, 1889-1914 (1992), de Maria Lucia Caira Gitahy, A carga e a culpa – os operários das Docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade, 1937-1968 (1995) e Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras (2003), de Fernando Teixeira da Silva, e O porto vermelho: a maré revolucionária, 1930-1951 e A “Moscouzinha” brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos, 1930-1954 (2007), de Rodrigo Rodrigues Tavares, entre outros, como De OGMO (Operário Gestor de Mão-de-Obra) para OGMO (Órgão Gestor de Mão-de-Obra): modernização e cultura do trabalho no Porto de Santos, dissertação de mestrado em Sociologia da cientista social Carla Diéguez, colega aqui de PortoGente.

 

PS: No texto da semana passada, sobre sites e blogs de cultura da cidade de Santos, deixei de mencionar a Revista Critério, editada por Marcelo Chagas, que traz artigos, entrevistas, podcasts e dossiês sobre literatura, filosofia, semiótica, artes plásticas e outros assuntos do pensamento. Fica o registro.

 

Referências

Dia-a-dia (blog do PortoGente). Conflito sindical no porto de Santos. 15/04/2009. Acesso em <http://www.portogente.com.br/comente/index.php?cod=22103>.

 

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Santos: Prefeitura Municipal de Santos e Scritta, 1996 (1ª edição 1937).

 

Jorge Amado. Agonia da Noite. Tomo II da trilogia Os Subterrâneos da Liberdade. 15 ed. São Paulo: Martins Fontes, 1968 (1ª ed. 1954).

 

Adelto Gonçalves. Os Vira-latas da Madrugada. Rio de Janeiro: Livraria José Olympio Editora, 1981.

 

Adelto Gonçalves. Barcelona Brasileira. São Paulo: Publisher Brasil, 2003.

 

Juarez Bahia. Ensina-me a ler: conspirando contra o amor. Petrópolis: Vozes, 1989.

 

Rodrigo Rodrigues Tavares. A “Moscouzinha” brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos (1930-1954). São Paulo: Associação Editorial Humanitas e Fapesp, 2007.

 

Rodrigo Rodrigues Tavares. O porto vermelho: a maré revolucionária (1930-1951). Módulo VI – Comunistas. Coleção Inventário DEOPS. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial, 2001.

 

Maria Lucia Caira Gitahy. Ventos do mar: trabalhadores do porto, movimento operário e cultura urbana em Santos, 1889-1914. São Paulo-Santos: Editora da UNESP e Prefeitura Municipal de Santos, 1992.

 

Fernando Teixeira da Silva. A carga e a culpa – os operários das Docas de Santos: direitos e cultura de solidariedade (1937-1968). São Paulo-Santos: Editora Hucitec e Prefeitura Municipal de Santos, 1995. 

 

Fernando Teixeira da Silva. Operários sem patrões: os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Campinas: Unicamp, 2003.

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