Escrevi há duas semanas sobre a relação entre biografia e literatura na obra de Roberto Bolaño, escritor chileno autor do romance Os detetives selvagens, um clássico contemporâneo. Na verdade, eu lamentava a tendência (deu no New York Times) de discutir seu trabalho a partir da celebridade de seu nome, como se as enrascadas de seus personagens narrados em primeira pessoa pudessem ser creditadas diretamente à vivência do autor.
Ainda que muitas delas tenham origem na própria experiência de Bolaño, é vedado a quem quiser contar a história de sua vida qualquer tentativa de realizar seu trabalho por meio do que o autor transformou em ficção. Em Bolaño, como na maioria dos autores, aquilo que virou literatura passa a ser apenas indício da vida, uma pista que o biógrafo, como um “detetive selvagem”, deve seguir, comprovar ou refutar (a expressão-título do romance se refere à busca dos protagonistas por informações sobre a vida de uma poetisa do modernismo dos anos 30).
Buscar na obra de Bolaño fatos históricos traz a mesma dificuldade para o pesquisador. Eles estão ali, mas não de forma direta. Dependem exclusivamente do impacto que causam nos personagens, os narradores de seu universo literário. Um exemplo é o narrador de seu primeiro livro publicado no Brasil, Noturno do Chile, Sebastián Urrutia Lacroix, um jovem padre, poeta e crítico literário que, após o golpe contra o presidente Salvador Allende, é convocado pela Junta Militar para dar aulas de marxismo para o próprio Pinochet e integrantes de seu governo. Até sua convocação, Lacroix, um recluso erudito, estava fora da vida política e, por isso, seu relato não dá acesso às prisões, torturas, mortes e desaparecimentos provocados pela ditadura, como bem vemos na literatura de testemunho (O que é isso, companheiro?, por exemplo e dezenas de obras de autores argentinos).
O isolamento do narrador faz com que, ao ser convocado pelos militares, o personagem acabe sendo jogado diretamente no centro daqueles acontecimentos. Lacroix relata assim a primeiras aula:
As fardas brilhavam, ora como cartões coloridos, ora como um bosque em movimento. Minha batina negra, mais que ampla, pareceu absorver num segundo toda a gama de cores. Naquela noite, a primeira, falamos de Marx e Engels. Das primeiras obras de Marx e Engels. Depois comentamos o Manifesto do Partido Comunista e a Mensagem do comitê central à Liga dos Comunistas. Como leitura, deixei-lhes o Manifesto e Os conceitos elementares do materialismo histórico, da nossa compatriota Marta Harnecker. Na segunda aula, uma semana depois, falamos das Lutas de classes na França de 1848 a 1850 e do Dezoito brumário de Luís Bonaparte, e o almirante Merino perguntou se eu conhecia pessoalmente Marta Harnecker e o que pensava dela. Respondi que não a conhecia pessoalmente, que era discípula de Althusser (ele ignorava quem era Althusser; esclareci) e que havia estudado na França, como muitos chilenos. É boa moça? Creio que sim, disse eu.
Esse pequeno trecho da narrativa, por exemplo, está carregado de história. Em um primeiro sentido, por causa da presença de livros. E aí reside uma das principais características do texto de Bolaño: a escrita, a literatura e os escritores são quase sempre protagonistas de suas histórias, não por terem poderes de revelar o mundo, mas simplesmente porque fazem parte do mundo e, assim, fazem a História.
Foto: Rafael Dias Herrera
Quepes militares sobre mesa do gabinete da prefeitura de Santos
após o golpe de 1964 que tira o poder das mãos dos civis.
O breve trecho, sem apontar dedos ou fazer denúncia, mostra também a cooptação da igreja e do intelectual pelo poder (a batina que absorve as cores das fardas), a ignorância dos governantes (“ele ignorava quem era Althusser”) e a perseguição ao intelectual não cooptado (a dúvida sobre Marta Harnecker; pouco mais à frente Lacroix ouve vozes dos generais em surdina falando da escritora). A narrativa em primeira pessoa nos ata à perspectiva do, podemos chamá-lo assim, escritor alienado, e só assim, de viés (pelas margens) chegamos à História, captada pelo leitor apenas se este assumir a tarefa de “detetive selvagem”, escovando o livro a “contrapelo” (na expressão de Walter Benjamin).
A historicidade (o pertencimento à História) da obra de Bolaño não está apenas nos fatos, mas também neste novo formato que permite à literatura chegar aonde o testemunho não conseguiu. Creio que ele venceu o desafio proposto pela crítica literária Beatriz Sarlo, já enunciado aqui em Porto Literário em outra ocasião:
A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados [pela reflexão sobre a sociedade], nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.
Bolaño deu esse passo e, ao se apoderar do pesadelo latino-americano das ditaduras, define um novo momento da literatura do continente.
PS: Ao criar ficção em editorial com a expressão “ditabranda”, a Folha de S. Paulo fez exatamente o contrário: criou mais uma camada de dificuldade na luta contra o pesadelo. Tem se tornado muito comum cobrar realismo da ficção (como fazem os biógrafos de Bolãno, por exemplo) e esquecemos que essa é uma obrigação daqueles que alegam trabalhar com fatos como os jornais dizem que fazem.
Referências
Roberto Bolaño. Noturno do Chile. São Paulo: Companhia das Letras, 2004 (citação p. 85).
Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada objetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da UFMG, 2007 (citação p. 119).