Sexta, 17 Mai 2024

Há duas semanas, escrevi sobre a epígrafe que o escritor Milton Hatoum escolheu para seu mais recente livro, a novela Órfãos do Eldorado. A epígrafe era o poema A cidade, de 1910, escrito pelo grego Konstantinos Kaváfis. Na segunda parte da peça literária sobre uma partida frustrada, lemos o seguinte:

 

Não encontrarás novas terras, nem outros mares.

A cidade irá contigo. Andarás sem rumo
Pelas mesmas ruas. Vais envelhecer no mesmo bairro,

Teu cabelo vai embranquecer nas mesmas casas.

Sempre chegarás a esta cidade. Não esperes ir a outro lugar,

Não há barco nem caminho para ti.

Como dissipaste tua vida aqui.

 

I

A epígrafe, vale repetir, é um texto escolhido por um autor para representar, explicar ou pontuar sua própria obra. Em Órfãos do Eldorado, a viagem frustrada criada em poesia por Kaváfis está em epígrafe a uma crônica de família na qual o herdeiro de um transportador de cargas pelos rios amazônicos narra a um desconhecido a saga de sua família, principalmente de seu pai, dono de navios que transportavam borracha e outros produtos na primeira metade do século XX.

 

Ao final do livro, o narrador, Arminto Cordovil, obcecado por uma mulher que perdera e depois de ter se livrado de toda a riqueza que herdara, ouve, digamos assim, uma bronca de Estiliano, advogado e amigo de seu pai. Pode-se notar na passagem como o poema de Kaváfis guia a escrita de Hatoum:

 

Porque, se fores embora, não vais encontrar outra cidade para viver. Mesmo se encontrares, a tua cidade vai atrás de ti. Vais perambular pelas mesmas ruas até voltares para cá. Tua vida foi desperdiçada neste canto do mundo. E agora é tarde demais, nenhum barco vai te levar para outro lugar.

 

II

A relação entre os portos do Amazonas e os personagens é a chave desta tragédia que é a decadência de Arminto. No final da história, já envelhecido e pobre, Arminto disputa turistas no cais com outros donos de pequenos barcos, todos querendo levar os visitantes para passear e conseguir assim uns trocados. Arminto chega até a encontrar Florita, a mulher que o criara na fazenda do pai, vendendo beiju fresquinho no desembarque do navio Hilary:

 

Comprei uma canoa grande e atraquei no porto, oferecendo um passeio aos passageiros da Booth Line. Depois, quando o Hilary inaugurou a linha Liverpool–Manaus, recebi gorjetas gordas. Era um colosso de navio, muito maior que os Hamburgo-América do Sul. Nos passeios de canoa, víamos garças no lombo de búfalos e, às vezes, um gavião-real voando sobre um lago de águas pretas.

 

O livro registra o contraste entre Arminto e a estirpe de seu pai e avô em duas passagens sobre a atividade portuária. Na primeira, da página 14, conhecemos os métodos e os negócios dos Cordovil.

 

E [eu] não tinha a obstinação de meu pai. Nem a esperteza. Armando Cordovil seria capaz de devorar o mundo. Era um destemido: homem que ria da morte. E olha só: a fortuna cai nas tuas mãos, e uma ventania varre tudo. Joguei fora a fortuna com a voracidade de um prazer cego. Quis apagar o passado, a fama de meu avô Edílio. Não conheci esse Cordovil. Diziam que ele ignorava o cansaço e a preguiça, e trabalhava que nem um cavalo no calor úmido desta terra. Em 1840, no fim da guerra dos Cabanos, plantou cacau na fazenda Boa Vida, a propriedade na margem direita do Uaicurapá, a poucas horas de lancha daqui. Mas morreu antes de realizar um sonho antigo: a construção do palácio branco nesta cidade. Amando inaugurou a casa quando casou com minha mãe. E passou a sonhar com rotas ambiciosas para os seus cargueiros. Um dia vou concorrer com a Booth Line e o Lloyd Brasileiro, dizia meu pai. Vou transportar borracha e castanha para o Havre, Liverpool e Nova York. Foi mais um brasileiro que morreu com a expectativa de grandeza.

 

Grandeza da qual Arminto nunca quis tomar parte. Ainda na casa dos 20 anos, para ele o porto não era, como para o pai, lugar de trabalho, de investimento, mas sim de diversão e dos pequenos ganhos do dia-a-dia, numa rotina que se repetiria após a chegada da pobreza:

 

Disse ao dono da [pensão] Cosmopolita que estava sem serviço, ia atrasar o pagamento do aluguel. Como ele tinha amigos no Roadway, comecei a trabalhar no embarque e desembarque de passageiros. Passava o dia todo no porto, sem tempo para estudar. Não recebia salário, apenas gorjetas. E ganhava roupa, chapéus e livros usados. Conheci assim o comandante do Atahualpa, do Re Umberto, do Anselm, do Rio Amazonas. Fiz amizade com Wolf Nickels, do La Plata. Esses comandantes trabalhavam na Lamport & Holt, na Ligure Brasiliana, no Lloyd Brasileiro, na Booth Line e na Hamburgo América do Sul. Às vezes eu acompanhava estrangeiros a um passeio de canoa nos lagos próximos de Manaus; andava com eles pelo centro da cidade, eram loucos para conhecer o teatro Amazonas, não entendiam como podia existir um colosso de arquitetura na selva.

 

E nada como um dos principais componentes dos portos, o navio, para definir a resolução do livro. É exatamente um cargueiro alemão, o Eldorado, principal navio da frota do pai, que funciona como catalisador da narrativa, reunindo em seu nome e destino a riqueza perdida da família e o mundo mítico da cidade encantada. Não sei se Hatoum concordaria, mas creio que essa é uma obra de identidade portuária, tanto no cenário como na oferta de metáforas para o próprio ato de escrever. 

 

Epílogo

Milton Hatoum estará em Santos nesta quarta-feira (16), às 20 horas, no Sesc, onde participa do Conversatório, evento literário que substitui o projeto Terceiras Terças. Será uma boa oportunidade para saber o que Hatoum pensa dos temas portuários (se é que isso já passou pela cabeça desse escritor e professor de literatura). A entrada é gratuita e o encontro será mediado por José Luiz Tahan, da Livraria e Editora Realejo.

 

 

Referências

Milton Hatoum. Órfãos do Eldorado. São Paulo: Companhia das Letras, 2008.

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