A oposição entre mar e sertão é um tema dos mais conhecidos do imaginário nacional. Já foi contado em prosa e verso, em canções, cordéis e também na produção acadêmica. A tensão entre os dois elementos é o pano de fundo, por exemplo, de Literatura como missão, história literária do professor Nicolau Sevcenko sobre o insucesso dos projetos nacionais embutidos nas obras de Lima Barreto – e sua perspectiva voltada ao mar – e de Euclides da Cunha, e suas idéias de ocupação do interior para o desenvolvimento da nação.
Em Os Sertões (1902), Euclides da Cunha produziu uma das obras mais estudadas da literatura nacional, na qual tornou ficção o episódio de Canudos em três partes: A Terra, O Homem e A Luta, dos quais o primeiro é considerado por muitos um texto híbrido, um tanto ficção, outro tanto sociologia, um bocado de descrição geográfica, como também de tratado geológico.
Foto: www.fb10.uni-bremen.de
Para o professor de Literatura Brasileira do Instituto de Estudos Latino-americanos da Universidade Livre de Berlim, Berthold Zilly, Euclides da Cunha foi ao mesmo tempo cronista, historiador e escritor, criando assim em Os Sertões uma representação da sociedade sertaneja que “consegue comover o público há quase noventa anos – e não só no Brasil” (isso foi dito numa conferência no início da década de 90 e então podemos dizer hoje que o livro comove há já mais de 100 anos).
É possível perceber essa ligação de Euclides da Cunha com o sertão nos seguintes versos do autor, tirados do poema As Catas (cata significa busca, procura):
Que outros adorem vastas capitais
Aonde, deslumbrantes,
Da Indústria e da Ciência as triunfais
Vozes se erguem em mágico concerto;
Eu, não; eu prefiro antes
As catas desoladoras do deserto,
Cheias de sombra, de silêncio e paz...
Eu sei que à alma moderna _ alta e feliz,
E grande, e iluminada,
Não pode sofrear estes febris
Assomos curiosos que a endoidecem
De ir ver, emocionada,
Os milagres da Indústria em Gand ou Essen,
E a apoteose do século _ em Paris!
Não invejo, porém, os que se vão
Buscando, mar em fora,
De outras terras a esplêndida visão...
Fazem-me mal as multidões ruidosas
E eu procuro, nesta hora,
Cidades que se ocultam majestosas
Na tristeza solene do sertão.
Além do sertão, o autor se preocupava também com a ocupação da Amazônia e com a história do desbravamento do interior a partir das bandeiras paulistas. Tudo isso se confluía na formação múltipla do autor: engenheiro, jornalista e escritor. É o que explica Sevcenko:
Ao lado desse esforço científico, Euclides preconizava a ação da técnica da engenharia de campo, a quem caberia comandar as obras destinadas ao arroteamento de novas terras, o saneamento de grandes áreas, a extinção de desertos, a definição dos relevos e das conformações geográficas, o levantamento geral das riquezas e o estabelecimento de linhas de comunicação diversas e eficientes. “A nossa engenharia não tem destino mais nobre e mais útil que esta conquista racional da nossa terra” [frase de Euclides da Cunha]. Daí sua admiração manifesta pela atuação do engenheiro-militar Cândido Rondon, seu colega de turma na Escola Militar da Praia Vermelha, nos recônditos em que seria criado posteriormente o território e hoje estado de Rondônia.
Mas o que então faria esse entusiasta da ocupação do interior voltar sua atenção para o poeta do mar, Vicente de Carvalho, para quem escreveu o prefácio a sua obra de 1908, Poemas e Canções?
A Correspondência de Euclides da Cunha não traz qualquer carta trocada entre os dois. Ali há apenas uma carta de Euclides, datada de 5 de maio de 1909, a Oliveira Lima, na qual informa ao amigo a eleição de Vicente de Carvalho à Academia Brasileira de Letras.
Para resposta, então, contamos com o próprio prefácio e ela parece surgir logo no primeiro parágrafo: antes de poeta do mar, Euclides vê em Vicente de Carvalho um “subjetivismo equilibrado” em torno de um “grande sentimento da natureza” que sai do oceano, toma a costa e chega à Serra do Mar, descrita assim pelo autor santista: “Negra, imensa, disforme / Enegrecendo a noite...”.`
Para Euclides da Cunha, Vicente de Carvalho escreve sobre a serra à moda de Os Sertões, descrevendo em chave poética sua geologia, como nos versos abaixo:
Na sombra em confusão do mato farfalhante
Tumultuando, o chão corre às soltas, sem rumo.
Trepa agora alcantis por escarpas a prumo,
Eriça-se em calhaus, bruscos como arrepios;
Mais repousado, além, levemente se enruga
Na crespa ondulação de cômoros [montículos] macios;
Resvala num declive; e, logo, como em fuga
Precipite, através da escuridão noturna,
Despenha-se de chofre ao vácuo de uma furna.
Do fundo dos grotões outra vez se subleva,
Surge,recai, ressurge... E, assim, como em torrente
Furiosa, em convulsões, vai rolando na treva
Despedaçadamente e indefinidamente.
Analisados da seguinte forma por Euclides da Cunha:
Para no-la definir [a Serra do Mar], e no-la agitar sem abandonar a realidade, mostrando-no-la vivamente monstruosa, a arrepiar-se, a torcer-se nas anticlinais, encolhendo-se nos vales, tombando nos grotões, ou escalando as alturas nos arrancos dos píncaros arremessados, requer-se a intuição superior de um poeta capaz de ampliar, sem a deformar, uma verdade rijamente geológica, refletindo num minuto a marcha milenária das causas geotécnicas que a explicam.
Epílogo
No prefácio, o autor de Os Sertões também levanta um motivo para que a obra de Vicente de Carvalho tenha vencido seu tempo e continuado a receber críticas favoráveis século XX adentro (ver A Atualidade de Vicente de Carvalho e seus poemas e canções). É que sua aproximação à “doce Religião da Natureza amiga” é uma atração que domina a poesia moderna, como um refúgio às transformações daquele período. Vamos ao pensamento de Euclides:
Esse fugir ao racionalismo seco das cidades, que até geometricamente se nos desenha nas ruas retangulares, nos quadrados das praças, nos ângulos diedros das esquinas, nas pirâmides dos tetos, nos poliedros das casas, nos paralelepípedos dos calçamentos e nas elipses dos canteiros, onde tudo é claro, matemático, compreensível, e as inteligências se nivelam na evidência de tudo, e as vistas se fatigam no martelar monótono dos sons, e a alma se fatiga na invariabilidade das impressões e dos motivos – vai-se tornando a mais e mais imperioso, à medida que a civilização progride.
Essa visão da natureza acaba sendo uma reação à urbanização técnico-científica que em Santos é determinada pela necessidade de criação de uma infra-estrutura adequada à exportação cada vez mais volumosa de café pelo porto da cidade no final do século XIX, mudanças das quais o próprio Vicente de Carvalho foi testemunha (ver Um poeta de dois portos).
Referências
Euclides da Cunha. Prefácio da 1ª edição de “Poemas e Canções”. In: Vicente de Carvalho. Melhores Poemas. Seleção de Cláudio Murilo Leal. São Paulo, Global, 2005. O prefácio pode ser lido no Wikisource; o poema As Catas e outros de Euclides da Cunha podem ser lidos na Biblioteca Virtual do Estudante de Língua Portuguesa; e a Correspondência de Euclides da Cunha pode ser baixada no TutoMania.
Berthold Zilly. A Guerra de Canudos e o Imaginário da Sociedade Sertaneja em Os Sertões, de Euclides da Cunha. Da crônica à ficção. Capítulo da obra de Ligia Chiapiini e Flávio Wolf de Aguiar (organizadores). Literatura e História na América Latina. São Paulo: Edusp e Centro Angel Rama, 1993.
Nicolau Sevcenko. Literatura como missão. Tensões Sociais e Criação Cultural na Primeira República. 2ª edição, revista e ampliada. São Paulo: Companhia das Letras, 2003.