O poeta chileno Pablo Neruda, vencedor do Prêmio Nobel de 1971, escreveu certa vez sobre o Porto de Santos em Santos Revisitado, cuja primeira parte foi analisada aqui em Três poemas chegam no porto de Santos, artigo que inaugurou o Porto Literário.
Tive acesso a essa primeira parte como epígrafe a Sombras sobre Santos, livro-reportagem de Mauri Alexandrino e Ricardo Marques da Silva que trata dos anos de repressão da ditadura militar em Santos. Nesta primeira parte, é narrada a chegada à barra, a descrição do ambiente do cais e é feito ali um lamento sobre as condições de trabalho naquele espaço. Ela termina assim:
Terra maldita, espero
que arrebentes um dia, de alimentos, de sacos mastigados
e de eterno suor de homens que já morreram
e foram substituídos para continuar suando.
Enquanto o trecho inicial descreve mais uma chegada do poeta em Santos, a quarta, realizada na década de 60 (o poema foi publicado em 1967 e Neruda cita Pelé), as demais tecem uma memória das visitas anteriores, apenas sugerida na primeira (“Antes era selvático este porto e cheirava/ como uma axila do Brasil caloroso”). Vamos a parte dois:
Aquele Santos de um dia de Junho, de quarenta anos menos,
volta a mim com um triste olor de tempo e bananeira,
com um cheiro de banana podre, esterco de ouro,
e uma raiva chuva quente sob o sol.
Os trópicos me pareciam enfermidades do mundo,
feridas pululantes da terra. Adeus
noções: Aprendi o calor
como se aprendem as lágrimas, com sobressalto:
aprendi os meses da Monção e a insensata
fragrância da manga de Mandalay (penetrante
como flecha veloz de marfim e face),
e respeitei os templos sujos de meus semelhantes,
escuros como eu mesmo, idólatras como todos os homens.
Começamos então com dois espaços de 40 anos, o da publicação do poema até esta resenha (1967-2007) e o que correu entre a primeira e a quarta chegada de Neruda em Santos (1927-1967). Na década de 20, Santos era uma escala na viagem de Neruda para a Birmânia, onde havia sido nomeado cônsul. Outras escalas eram Buenos Aires, Madrid e Paris. Esta seria apenas uma das várias viagens de Neruda como representante diplomático ou militante comunista.
Já a memória do narrador se concentra no clima da cidade e seu porto (“triste olor de tempo”, “raivosa chuva quente sob o sol”, “feridas pululantes da terra”, “aprendi o calor como se aprendem as lágrimas”).
Na parte três, como é característico da obra de Neruda, o poeta se volta para a canção de amor e, na seção seguinte, o tema do esquecimento (logo, da memória) sobre a cidade volta ao poema:
Santos, oh desonra do olvido, oh paciência
do tempo, que não só passou
mas que trouxe barcos grandes, verdes, sutis
e o tremor florestal se fez ferruginoso.
A última linha anuncia o quinto e último trecho, em que o poeta percebe de vez a substituição da natureza pela atividade humana no estuário santista:
Compreendo que escutei a esfera pondo o ouvido em um ponto
e às vezes ouço só um rumor de marés ou abelhas:
ou o estrondo espacial da nave que estala em seu ovo de aço
e que sobe silvando entre constelações e temperaturas,
perdoem algum dia se não vi o crescimento dos edifícios
porque estava olhando crescer uma árvore, perdão.
Tratarei de cumprir com aquelas cidades que fugiram de minha alma
e se armaram de duras paredes, elevadores altivos,
deixando-me fora na chuva, olvidado nos anos ausentes,
agora que volto de então tiro o chapéu, e rio
saudando este grande esplendor sem desejo nem inveja:
sentindo-me vivo como uma laranja cortada conserva em
sua metade de ouro o intacto vestido de ontem
e no outro hemisfério respeita o cimento crescente.
Só um poeta do calibre de Neruda para falar assim de uma cidade que nem é a sua.
Epílogo
I
Apontamos aqui as escalas do poeta chileno em seu caminho para a Birmânia; registramos também as escalas do poema Santos Revisitado no tempo: a primeira viagem, a segunda, 40 anos depois, e esta pobre resenha, outros 40 mais tarde.
Mas o próprio livro em que o poema está publicado, A Barcarola, foi realizado em escalas, em episódios localizados em países diferentes seguidos por uma seção, Segue a Barcarola, na qual a canção parte para uma nova geografia. Os episódios se sucedem pelas terras e águas (rios e mares) de cidades chilenas, de Paris, de Montevidéu, do bairro portuário da Boca, em Buenos Aires, da Patagônia, de Santos e da Rússia. O índice foi estruturado na seguinte seqüência: Começa a Barcarola, Primeiro Episódio, Segue a Barcarola, Segundo Episódio, Segue a Barcarola, Terceiro Episódio, etc., até o 12º episódio e o epílogo A Barcarola termina.
II
A Barcarola, explica uma das notas da edição, era uma canção muito executada no começo do século XX e cuja partitura inicial foi reproduzida no início do livro, cuja versão tem arranjo de Roberto Redes e letra de R. Tudela. Uma rápida consulta na Wikipédia traz a informação de que barcarola é uma canção folclórica cantada pelos gondoleiros venezianos que chegou ao gênero clássico por meio das mãos de Fréderic Chopin em Barcarola para Piano em Fá Sustenido Maior (Opus 60). Outros compositores eruditos que trataram do tema foram Jacques Offenbach, Paisiello, Weber, Rossini, Schubert, Tchaikoviski e Bela Bartók, entre outros.
Pós Escrito
Na epígrafe ao livro de Alexandrino e Marques da Silva o título do poema de Neruda foi traduzido como Santos Revisitada, no feminino, enquanto a tradutora de A Barcarola, Olga Savary, optou por manter o adjunto adnominal no masculino, talvez por causa do primeiro verso da segunda parte, que fala de “Aquele Santos”. Quando encontrar os versos no original em espanhol, tratarei de comparar as duas opções.
Referência
Pablo Neruda. A Barcarola. 1ª edição de 1967. Tradução de Olga Savary. 2ª edição. Porto Alegre: LP&M, 2007.