O primeiro tema que vamos tratar neste espaço Radar Usuport-RJ em 2019 é de extrema relevância para os usuários dos portos brasileiros. Trata-se das sobre-estadias de contêineres (demurrages e detentions), que representam um dos mais elevados custos para os usuários, uma verdadeira sangria com potencial de quebrar pequenas e médias empresas. Covardemente, a Agência Nacional de Transportes Aquaviários (Antaq) se recusou a regular o tema, deixando os embarcadores, exportadores e importadores entregues à própria sorte, nas mãos de armadores estrangeiros em um mercado altamente concentrado, caracterizado por ser um oligopólio.
Porto do Rio visto a partir da Praça Mauá - Foto: Bruno Merlin
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A Resolução Normativa nº 18/2017 da Antaq que, dentre tantos assuntos, trata dos direitos e deveres dos usuários, foi discutida durante mais de três anos pela Agência. Foram necessárias duas audiências públicas até que se chegasse ao texto publicado. A Usuport-RJ, a Usuport BAHIA e a Usuport-SC (atualmente Usuport-SUL), no ano de 2015, durante a primeira audiência pública (nº 03/2015) da RN, tendo em vista que a primeira proposta de norma da Antaq estava muito ruim, por meio de uma contribuição conjunta de mais de 80 páginas, se manifestaram de acordo com a natureza indenizatória das sobre-estadias de contêineres, a mesma defendida pelos transportadores marítimos.
Ao tomar este posicionamento, as três entidades pediram que a Antaq regulasse, dentre outras questões, o valor de diária praticado, defendendo que não pode haver receita nem lucro com a cobrança, sendo limitado à reposição de perdas com a retenção, garantindo, portanto, o serviço adequado, o equilíbrio financeiro do transportador e do usuário, com cobranças de indenização em base justas para ambos. Nesta rica contribuição, as três associações também trataram dos absurdos que são os termos de compromisso, que será tema de outro artigo a ser publicado.
Na segunda audiência pública, em 2016, por meio de nota técnica intitulada REABERTURA DA AUDIÊNCIA PÚBLICA Nº 3/2015 - JUSTIFICATIVA - extremamente fraca e pobre em termos de argumentos técnicos para resolver o problema, considerando a relevância da questão -, a Antaq expôs que não enfrentaria a natureza jurídica da sobre-estadia de contêiner, pois, embora importante, não era salutar para aquele momento.
Obviamente que esta omissão permaneceu no texto da RN 18/17 e tem favorecido tremendamente os transportadores marítimos. Nem as sugestões no sentido de proibir que intermediários colocassem sobrepreço nos valores das diárias foram atendidas. Essa omissão permitiu que a indústria da sobre-estadia de contêiner permanecesse no Brasil, transformando em receita, com lucros altíssimos, aquilo que deveria ser apenas indenização. No caso dos intermediários, por exemplo, qual o prejuízo logístico que eles teriam com a retenção do contêiner que justifique a colocação de sobrepreços, se nem frota de contêineres a esmagadora maioria possui?
Certamente, os embarcadores, exportadores e importadores, aqueles que sangram com as cobranças abusivas de sobre-estadias de contêineres, devem estar revoltados ao saber desta história. Contudo, a coisa é ainda pior, pois, além de omissa com os usuários, a Antaq ainda fez questão de dar uma mãozinha amiga aos armadores estrangeiros e intermediários.
Não bastasse tal problema, o mais grave disso tudo é que em 2018 a Agência lançou a Cartilha de Direitos e Deveres dos Usuários da Navegação Marítima e de Apoio - Resolução Normativa N° 18-ANTAQ, afirmando, na página 6, que a sobre-estadia de contêiner tem natureza indenizatória. Ao utilizar a palavra ressarcimento, misturando a natureza com cláusula penal - criando dupla natureza -, ao afirmar que a sobre-estadia serve para compelir à devolução do contêiner, ou seja, dando natureza de penalidade para justificar os altos valores, sendo que, no final da página, chama atenção para o fato de que a "sobre-estadia NÃO possui a natureza jurídica de cláusula penal e sua cobrança NÃO é limitada ao valor do contêiner ou do frete".
"Tapas na cara" dos usuários dos portos
A redação desta cartilha é um verdadeiro tapa na cara dos usuários, pois mais parece um texto criado por armadores para facilitar ainda mais as cobranças, principalmente pela via judicial. Realmente, ao dar dupla finalidade (ou dupla natureza) à cobrança de sobre-estadia, a Antaq favoreceu os armadores a cobrarem indenizações que penalizam os usuários com seus altos valores. A Antaq deu novo significado à palavra indenização, retirando qualquer chance de que exista serviço adequado.
Outro aspecto que a cartilha menciona e que não reflete a realidade do mercado é que as sobre-estadias são livremente negociadas, quando se tratam de valores pré-fixados em tabelas impostas aos usuários. Falar que os valores de sobre-estadias são livremente negociados é mais um tapa na cara dos usuários, pois a esmagadora maioria de empresas, formada por médias e pequenas, não tem poder de barganha algum frente aos grandes armadores estrangeiros que operam no Brasil.
Pátio de contêineres no Porto de Hamburgo - Foto: distel2610/Pixabay
O trecho da cartilha que trata das sobre-estadias de contêineres tem causado mais danos ainda aos usuários, pois o posicionamento da Agência deveria ser levada à audiência pública, vez que é a base da regulação da cobrança, fundamentalmente dos valores, assunto em que a Antaq decidiu se omitir, mesmo considerando importante.
Com efeito, tais abusos colocaram o Brasil no 1º lugar em quantidade de ações de sobre-estadias do mundo, chamando a atenção de especialistas de outros países, assim como em valores absurdamente cobrados sem critério adequado. Para piorar, nosso Judiciário, em praticamente todos os processos, não observa os valores abusivos, se atendo apenas às questões de Direito.
Sobre-estadias de contêineres são dez vezes o valor da diária
Estudos feitos pela Usuport-RJ indicam muitos casos em que os valores das diárias das sobre-estadias de contêineres são dez vezes o valor da diária, se comparados com período que os contêineres estão em transporte (período entre a retirada da unidade vazia na origem, transporte, até a devolução no destino).
Para exemplificar este absurdo pegamos um caso, entre milhares, que segue as mesmas práticas abusivas: pela contratação de um transporte que dure cinquenta dias, somando todos os custos do navio, custos portuários, dentre outros o usuário desembolsou US$ 1,700.00 de frete. Se fizermos uma divisão do valor pago de frete pelos 50 dias, teremos que o valor diário, com tudo incluso, ou seja, quando o contêiner está em transporte, é de US$ 34,00 (US$ 1,700.00 ÷ 50 dias). No entanto, tomando como base a tabela de sobre-estadia armador que fez o transporte, se este mesmo contêiner estivesse em sobre-estadia durante 50 dias, o usuário pagaria a monta total de US$ 16,868.00, ou seja, US$ 337.36 por dia. Por que, em transporte, com todos os custos do frete envolvidos, a diária do contêiner custa US$ 34,00 e, quando em sobre-estadia, em poder do usuário, custa é dez vezes mais? Uma cobrança 10 vezes maior é indenização? Estas perguntas a Antaq teria que responder em audiência, se a opção regulatória não fosse a omissão.
Na prática, é isso que a Antaq está chancelando, usando sua cartilha para defender os interesses dos armadores. Por isso, para não ter que regular os valores das diárias, a Agência se recusou a tratar da natureza da cobrança das sobre-estadias de contêineres. Se tivesse entrado neste certame, a Antaq chegaria à conclusão de que os armadores e intermediários estão ganhando muito com a cobrança e que ela não tem natureza indenizatória, mas sim de cláusula penal, o que limitaria as cobranças ao valor do contêiner ou do frete. Basicamente, é como se dissesse aos armadores: ou vocês me mostram que estão se indenizando de fato, ou o valor que vocês cobram terá natureza se cláusula penal e vamos limitar a cobrança. Ou seja, a Antaq teria que tomar uma atitude e, por isso, se valeu da opção regulatória de prejudicar os usuários.