Lá atrás, em maio, a coluna informava como pretendia elaborar o diálogo entre literatura e história (veja aqui). Seguidos artigos mostravam as ruas do Macuco e as condições de trabalho registradas no romance “Navios Iluminados”, o porto e a formação da cidade no romance “A carne”, e por aí afora.
Nas últimas semanas, em que “Navios Iluminados” voltou a freqüentar o web-espaço do PortoGente, configurou-se a tese de que o romance, por sua ambientação na cidade integradora dos fluxos nacionais e internacionais, poderia representar o espaço nacional a partir de uma perspectiva portuária. A coluna de hoje tenta desenvolver o tema.
Comecemos pelo título: um pesquisador que se debruça sobre cidades como Santos, Campinas ou Ribeirão Preto produz textos de história regional? No caso da cidade portuária a resposta é não e foi dada em 2003 pelo historiador Fernando Teixeira da Silva, em “Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras”, obra que faz um painel das transformações políticas e da organização do trabalho na cidade a partir dos movimentos de duas categorias: os trabalhadores da construção civil e os estivadores.
Na introdução da obra, ele diz o seguinte:
“Pesquisas realizadas em cidades como a de Santos, porém, recebem às vezes o qualificativo de ‘história regional’. Tais estudos efetivamente contribuem para o conhecimento da história de um determinado quadro urbano. Mas também pode levantar questões cuja validade não deva ser apenas local, permitindo, ao contrário, um diálogo com outros trabalhos, experiências históricas e questões historiográficas de amplo alcance no tempo e no espaço”.
Para isso, o autor não se limitou ao estudo de uma única categoria de trabalhadores, ou a um único sindicato, a apenas um grupo de empresários empregadores, uma só orientação político-ideológica. A obra reúne trabalhadores anarquistas, comunistas e amarelos, aponta os conflitos entre setores empresariais concorrentes e reconstrói as relações de todos eles com o governo federal, seus embates e alianças estratégicas ou pontuais e equilibra as lutas ideológicas com as conquistas do dia-a-dia.
Com este quadro montado, o autor explica porque a cidade portuária deve ser levada em conta na hora de se contar a história nacional:
“Ao estabelecer conexão com a economia regional, nacional e internacional, o porto torna-se o lugar onde se desenvolve uma complexa logística política e empresarial que depende da intervenção de muitos grupos sociais da esfera pública e privada na gestão de avultados fluxos materiais (mercadorias) e imateriais (informações). Assim, o porto penetra e ramifica-se em uma vasta hinterlândia, fazendo com que a vida portuária seja dominada por relações sociais eminentemente urbanas”.
Essa relação de Santos com a história nacional, tão bem registrada por Fernando Teixeira da Silva, não deve ser confundida, porém, com aquelas “patriotadas” de cidade de província, do tipo que enaltecem alguma figura porque nasceu na cidade, ou por aqui passou ou morreu, ou por algum fato histórico que aqui tenha ocorrido.
Com as limitações de conhecimento do colunista e as limitações de espaço de uma peça jornalística, o que Porto Literário tentou fazer nas últimas colunas foi esboçar como a literatura produzida aqui na cidade pode também refletir o Brasil e o momento intelectual em que foi escrita. Isso não quer dizer que as ruas da cidade deixarão de aqui aparecer, que é por elas que andam os personagens de nossa ficção, mas que temos a obrigação de pensar o “nacional” e não só comemorar as festivas visitas de governadores, ministros e presidentes que vêm saudar os súditos da província.
Referências:
Fernando Teixeira da Silva. Operários sem patrões. Os trabalhadores da cidade de Santos no entreguerras. Editora Unicamp; Campinas; 2003.
Ele é o autor também de:
A carga e a culpa. Os operários das Docas de Santos: Direitos e Cultura de Solidariedade. 1937-1968. Edição comemorativa do 450º aniversário da fundação de Santos. Editora Hucitec/Prefeitura Municipal de Santos; São Paulo/Santos; 1995.