Clique aqui para ler a primeira parte deste artigo.
II
O acerto narrativo de Carmen Laforet está aí, em fazer da solidão da personagem e da solidão das ruas uma mesma narrativa. Ao passar pelo porto, ao contrário do que ocorre com Emma Zunz, Andrea não busca uma história, ela quer é se livrar das histórias familiares que a oprimem. O espaço portuário, da escala da vastidão, torna-se assim uma promessa de vazio, o nada do título:
Via que as pessoas me olhavam com certo assombro e, ao perceber, mordi os lábios de raiva... “Agora faço gestos nervosos como Juan”... “Estou ficando louca também”... “Tem quem fica louco de fome”...
Desci pelas Ramblas até o porto. A cada instante se enternecia em mim a lembrança de Ena, tanto carinho me inspirava. Sua própria mãe tinha me assegurado que ela me estimava. Ena, tão querida e radiante, me admirava e estimava. Me sentia como enaltecida ao pensar que haviam me requisitado uma missão providencial junto a ela. Eu não sabia, no entanto, se realmente ia servir de alguma coisa minha intervenção em sua vida. A advertência que Glória me fez quando esteve comigo naquela tarde me enchia de inquietações.
Estava no porto. O mar encaixotado apresentava suas manchas de óleo brilhante a meus olhos; o cheiro de breu, de cordas, penetrava em mim profundamente. Os barcos ficavam enormes com seus altíssimos costados. Às vezes, a água parecia tremida como por um golpe da cauda de um peixe: uma barquinha, um golpe de remo. Eu estava ali naquele meio-dia de verão. Da coberta de algum navio, talvez, uns olhos azuis nórdicos me veriam como minúscula pincelada de uma estampa estrangeira... Eu, uma garota espanhola, de cabelos escuros, parada um momento no cais do porto de Barcelona. Dentro de uns instantes a vida seguiria e iria me deslocar para algum outro ponto. Me encontraria com meu corpo emoldurado em outra decoração... “Talvez – pensei afinal, vencida sempre por meus instintos martirizados – comendo em algum lugar”. Tinha pouco dinheiro, mas ainda algum. Devagar, fui aos alegres bares e restaurantes de Barceloneta. Nos dias de sol , azuis ou brancos, dão sua nota marinha e alegre. Alguns tinham mesas na calçada onde pessoas com bom apetite comem arroz e frutos do mar, estimuladas por quentes e coloridos odores de verão que chegam das praias ou das docas do porto.
Há uma edição recente do livro em português publicada em 2008 no Brasil pela editora Alfaguara.Referência
Carmen Laforet. Nada. Barcelona: Destino, 2007 (1ª ed. 1945).