Quando o escritor chileno Roberto Bolaño (1953-2003) começa a ser discutido pelos cadernos culturais brasileiros, a regra foi de identificá-lo como um autor que se manifestava contra o realismo maravilhoso de Gabriel García Marquez, Julio Cortázar (que são bem diferentes entre si). É a necessidade de criar polêmica. Hoje, apresento um pequeno indício de como Bolaño, em sua originalidade como autor, mais do que rechaçar a geração anterior, avança em seus universo.
* Americanidades (I)
* Americanidades (Parte II)
* Oras bolas, à literatura então! (Americanidades III)
* Americanidades IV: Bolaño, Buenos Aires, Santos
* Duas famílias no exílio e Bolaño em Juiz de Fora
Ele está na comparação entre duas aberturas: a de Cem anos de solidão (1967), de García Marquez, um “era uma vez” que dá saltos no tempo e na memória do personagem, e a do romance póstumo de Bolaño 2666 (2004), que adota o procedimento.
Cem anos de solidão
Muitos anos depois, diante do pelotão de fuzilamento, o Coronel Aureliano Buendía havia de recordar aquela tarde remota em que seu pai o levou para conhecer o gelo. Macondo era então uma aldeia de vinte casas de barro e taquara, construídas à margem de um rio de águas diáfanas que se precipitavam por um leito de pedras polidas, brancas e enormes como ovos pré-históricos. O mundo era tão recente que muitas coisas careciam de nome e para mencioná-las se precisava apontar o dedo...
2666 (tradução minha)
A primeira vez que Jean-Claude Pelletier leu Benno Von Archimboldi foi no Natal de 1980, em Paris, onde cursava estudos universitários de literatura alemã, com a idade de dezenove anos. O livro em questão era D’Arsonval. O jovem Pelletier ignorava então que esse romance fazia parte de uma trilogia (composta por O Jardim, de tema inglês, A máscara de couro, de tema polonês, assim como D’Arsonval era, evidentemente, de tema francês), mas essa ignorância ou esse vazio ou esse desleixo bibliográfico, que podia ser imputado a sua extrema juventude, não reduziu o ápice de deslumbramento e de admiração que lhe produziu o romance.
Apesar dos universos bem distintos (Macondo e Paris), o paralelismo é evidente: o vai-e-vem temporal (muitos anos depois iria recordar; a primeira vez que leu), a nomeação da cidade, a experiência formadora (conhecer o gelo, ler Archimboldi), a ignorância como o vazio inicial (do universo de Macondo; do mundo da pesquisa acadêmica). Pode-se pesquisar e especular sobre as intenções de Bolaño, mas o fato é que o jogo de espelhos está aí.
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