Sábado, 28 Dezembro 2024

Já escrevi antes sobre Santos Revisitado, poema de Pablo Neruda. Em Três poemas chegam no porto de Santos e As escalas de Pablo Neruda traço relações entre o espaço geográfico dos portos e a literatura que os toma por cenário, principalmente a primeira parte. A abordagem de hoje é mais especulativa, tem origem em uma leitura pública no sábado, no Sarau Caiçara, na Pinacoteca de Santos, quando o escritor Flávio Viegas Amoreira leu e comentou a segunda, terceira, quarta e quinta partes do poema, de versos   como

 

IV

Santos, oh desonra do olvido, oh paciência
do tempo, que não só passou
mas que trouxe barcos brancos, verdes, sutis
e o tremor florestal se fez ferruginoso.

 

V
Compreendo que escutei a esfera pondo o ouvido em um ponto
e às vezes ouço um rumor de marés ou abelhas:
perdão se não pude e a tempo escutar essa locomotiva
ou o estrondo espacial da nave que estala em seu ovo de aço
e que sobe silvando entre constelações e temperaturas,
perdoem algum dia se não vi o crescimento dos edifícios
porque estava olhando crescer uma árvore, perdão.

Tratarei de cumprir com aquelas cidades que fugiram de minha alma
e se armaram de duras paredes, elevadores altivos,
deixando -me fora na chuva, olvidado nos anos ausentes,
agora que volto de então tiro o chapéu, e rio
saudando este grande esplendor sem desejo nem inveja:
sentindo-me vivo como uma laranja cortada conserva em
sua metade de ouro o intacto vestido de ontem
e no outro hemisfério respeita o cimento crescente.

 

E o poema, publicado em 1967, fecunda uma reflexão do escritor sobre o corrente impacto da especulação imobiliária na cidade de Santos, esta cidade-laranja de duas metades, que se há 40 anos poderia esperar alguma harmonia – “metade de ouro” e respeito ao “cimento crescente” – hoje quase se rende à arquitetura Art Nojô.

 

Pode-se sempre argumentar que a leitura pode ser forçada, mas os versos “perdoem algum dia se não vi o crescimento dos edifícios / porque estava olhando crescer uma árvore, perdão.” permitem a leitura de Flávio. Mas este não é o único caso de ficcionalização dos conflitos territoriais na cidade portuária. O livro-torpedo de Zéllus Machado traz uma paródia do início da era dos empreendimentos imobiliários, ainda na década de 90, na fictícia cidade de Sotnas. Também no Sarau, o próprio Zéllus alertou sobre o perigo imobiliário que cerca “nossa Santos”, um “nossa” que soava a “de todos”. Outro conflito, aquele entre as operações portuárias e a cidade, surge em forma ficcional em 2005, ano de publicação de História dos ossos, em que Alberto Martins nos mostra a história de um homem chamado pela administração do Cemitério do Paquetá para tirar dali a ossada de seu pai porque o local seria transformado em um pátio de contâineres. E o achado dessa imagem não se resume a apresentar o conflito urbano. Essa transformação espacial (do cemitério) tem valor narrativo. É ela que faz o protagonista disparar pelas ruas antigas de parte de sua infância. 

 

A literatura mostra apenas que o conflito está aí e reaparece continuadamente das mais variadas formas. Logo, logo, o pré-sal irá impor à região uma nova riqueza e ela trará novas representações urbanas, arquitetônicas e até estéticas (para melhor ou pior, depende sempre dos humores de cada um). Qual poeta irá profetizar tal novo tempo?

 

A encruzilhada está aí à frente: para um lado a placa aponta para a Miami Brasileira e suas piscinas do filme Cocoon; ao outro indica um caminho talvez distante no tempo, em direção à Barcelona Brasileira. Os que inclinam o espírito a este segundo resistem, estão por aí produzindo e algumas vezes já passaram por este Porto Literário (leia aqui).

 

Para qual lado penderá a riqueza do pré-sal?

 

Referências

Alberto Martins. História dos ossos. São Paulo: Editora 34, 2005.           

 

Pablo Neruda. A Barcarola. Tradução de Olga Savary. 2ª edição. Porto Alegre: LP&M, 2007 (1ª ed 1967).

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