Terça, 14 Mai 2024

Há poucas semanas, escrevi aqui sobre os ideais da crítica para Machado de Assis:

 

Para que a crítica seja mestra, é preciso que seja imparcial – armada contra a insuficiência dos seus amigos, solícita pelo mérito dos seus adversários –, e neste ponto, a melhor lição que eu poderia apresentar aos olhos do crítico seria aquela expressão de Cícero, quando César mandava levantar as estátuas de Pompeu: “É levantando as estátuas do teu inimigo que tu consolidas as tuas próprias estátuas”.

 

Neste texto procuro exercitá-los.

 

Não é nada tão dramático como um adversário ou inimigo. É algo muito menos nobre, antipatia: não tinha vontade alguma de ler qualquer coisa do escritor Marcelo Mirisola [foto], que esteve em janeiro na Livraria Realejo, de Santos (SP), para lançar "Memórias da sauna finlandesa". Nas entrevistas que já vi e ao vê-lo em público não via qualquer graça no discurso mal criado, birrento e cheio de veneno da figura pública. Lendo os contos do livro, notei que literatura é o que ele escreve, e não o que diz. Ainda bem, porque “que se dane o autor”, numa citação que me parece correta do que ele disse lá na Tarrafa Literária, em setembro do ano passado.

 

Para mim, a figura pública de Mirisola luta para tomar o posto de provocador de plantão num espaço vago que foi sendo desocupado com a decadência de Caetano e a morte de Paulo Francis. Mas creio que hoje, tempos escrotinhos, a briga seja dura. Devo acrescentar que me apresentei a Mirisola na Livraria Realejo, e não me pareceu nada antipático. Fortaleceu-se então a impressão da artificialidade da persona das entrevistas. À literatura, então.

 

O discurso politicamente incorreto de propósito (que em entrevistas parece só para provocar), na escrita ganha graça e estilo. E o seu não é um texto com humor, é, sobretudo, um texto de humor (e não sou psicanalista para medir a porção involuntária disso – de novo: o que interessa é a literatura). Seus alvos são os atores sociais progressistas ou que já foram um dia, todos de alguma forma decadentes. Devemos dar crédito à coragem do cara.

 

O primeiro conto, Sobre os escombros da felicidade, dá o tom do que vem pelo livro todo: um casal de classe média alta do Rio de Janeiro que enriquece por meio de uma pet shop para cachorros de celebridades e afins. Quem narra é o marido:

 

A loja era a cara da Bebel [a esposa], e uma vitrine do que a Zona Sul tinha de melhor a oferecer ao Rio de Janeiro. As pessoas queriam conhecer Bebel para conhecer a cidade. Aquela loja era o Leblon das novelas do Manoel Carlos. Depois da Bossa Nova, e apesar do caos social em que havíamos mergulhado, nosso Pet era só felicidade, era a esperança de que a cidade não turvaria, ficava bem na esquina da Ataulfo de Paiva com a Dias Ferreira. A loja era freqüentada por socialites, apresentadoras de televisão, gente de bem interessada em projetos sociais, negros e negras globais, jogadores de futebol e os filhos da estirpe mais nobre da nossa MPB. 

 

Ponto alto do conto é a festa de aniversário de Thiaguinho, o cachorro de estimação do casal. Um dos principais convidados é Bidu, o cachorro de Verinha Loyola, além dos colegas de canil do Thiaguinho, “professoras de hidromotricidade e os veterinários, e os pais e as mães e os mestres, todos os nossos clientes”:

 

Thiaguinho fez logo amizade com Bidu, e os dois se apresentaram ao piano (eles também andavam de skate). Verinha Loyola aplaudia nossas crianças extasiada. A editora de moda da Pet Petit e o pessoal do Canal Cão cobriam a festa igualmente deslumbrados. 

 

O clima escrotinho se repete nos mais de vinte contos do livro, em títulos como Nunca mais o lixinho no biombo, Spagheti espiritual, Claudinha em volta do xibiu ou On the Road à parmegiana.

 

Ainda que não simpatize com as tiradas escrotinhas antipáticas de Mirisola, não posso deixar de notar como elas funcionam no texto escrito. Risadas garantidas.

 

Referência

Marcelo Mirisola. Memórias da sauna finlandesa. São Paulo: Editora 34, 2009.

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