Quarta, 15 Mai 2024

Revendo alguns quadros de Benedito Calixto no domingo quente na Pinacoteca, tive a ideia de por lado a lado, dialogando, reproduções do pintor e trechos históricos e literários sobre as cenas. O resultado, longe de concluído, está aí embaixo:   

 


Benedito Calixto, Fundação da Cidade (Museu do Café)

 

Saibam quantos esta escritura de demarcação virem em como no ano de Nosso Senhor Jesus Cristo de mil e quinhentos e coarenta e cinco em onze dias do mez de março do dito ano em a povoação de Santos, termo da vila de S. Vicente, costa do Brasil, capitania de que é Governador o Senhor Martim Afonso de Souza, em a casa de morada de Braz Cubas, capitão da capitania pelo dito senhor em presença de mim tabelião e das testemunhas ai diante escritas digo adiante... (Traslado de auto de demarcação de terras de Jeribaty feita por Braz Cubas, fundador de Santos, e Luiz de Goes; fonte: Waldir Rueda)

 

Aqui estou eu pela primeira vez em minha vida, no porto de mar de nossa província em Santos, terra cálida, úmida, sufocante, preferida por Martin Afonso aos feiticeiros arredores da baía de Guanabara. O reverendo Güidder e Fletcher, no livro que publicaram sobre o Brasil, deram-se a perros para descobrirem a razão da preferência e... ficaram em jejum. O mesmo me acontece. Com efeito, por que teria Martin Afonso preferido isto ao Rio de Janeiro? Tudo levava a crer que era o contrário que se devia dar. Que rasgo de intuição genial, que vista interna miraculosa teria revelado ao colonizador português a superioridade imensa desta zona vicentina em que há terra roxa, em que há um clima sem rival para a lavoura, sobre a orla limítrofe, de terra vermelha, árida, sequiosa? E o caso é que sem razão aparente, sem dador aceitáveis, houve a preferência, e que essa preferência criou a primeira província do Brasil, e quiçá o primeiro dos pequenos estados livres do mundo. (Carta de Manuel Barbosa, datada de 22 de janeiro de 1887, desde Santos, para Lenita, ambos personagens de A Carne, de Júlio Ribeiro).  

 


Benedito Calixto, Igreja do Carmo (Pinacoteca de Santos)

 

Entre a serra

e o mar

a maré avança

escalando buracos

cavando rochedos

os sinos da igreja

a casa do Concelho

se alastrando

– via mangue –

até o Centro.

(Trecho de Esboço de estuário, poema de Alberto Martins)

 

 


Benedito Calixto, Vista da Cidade (Associação Comercial de Santos)

 

Eu subi ao Monserrate. (...) O que vai se desenrolando aos olhos durante a ascensão é simplesmente maravilhoso. A planície estende-se ao longe; nivelada pela natureza, coberta de uma alcatifa de mangue; a cidade, em quarteirões regulares, paralelo-gramáticos, ocupa o sopé do morro, betada de ruas calçando pardo, manchando aqui e ali por maciço verde de árvores, por uma palmeira esguia; ao fundo, de um e outro lado a serra do continente; fronteiras as colinas abruptas de Santo Amaro. O ancoradouro, o pego do Canehu e outros largos do estuário semelham chapas de aço polido, com os quais põem notas de vários tons os pontões desgraciosos, os navios que estão sobre ferro. (Carta de Manuel Barbosa).

 

 


Benedito Calixto, Praia do Consulado (Pinacoteca de Santos)

 

Os enormes vapores transatlânticos alemães, os esquisitos e bojudos carregadores austríacos, as feias barcas inglesas e americanas de costado branco, os mil transportes de todas as nações, entram pela ria, encostam-se à praia, varam quase em terra, afundam as quilhas no lodo negro, constelado de cascas de ostras, de ossos, cacos de louça, de garrafas, de latas, de ferros velhos, dessas mil imundícies que constituem como que excrementos de uma povoação. Comunicam com a terra por pranchões lisos, ou canelados a tabicas. (Carta de Manuel Barbosa).

 

 


Benedito Calixto, Ponte Pênsil

 

passar

entre margens em suspenso

como se

só no auge do silêncio

ouvisse

 

o balanço de uma língua-mãe

ou língua-mangue ou lagamar

a reunir em si todas as línguas

 

do lodo

do caranguejo

e da rã

 

– mas como articular em sílabas

um som que não tem centro

se o mar é tanto

e a ponte, pênsil?

(Da Praia Grande ao Mar Pequeno, poema de Alberto Martins)

 

Referências

Valdir Rueda. Braz Cubas: Homenagem a uma vida. Santos: Comunicar, 2007.

 

Júlio Ribeiro. A Carne. São Paulo: Saber, sem data (1ª ed 1888).

 

Alberto Martins. Cais. São Paulo: Editora 34, 2002.

Curta, comente e compartilhe!
Pin It
0
0
0
s2sdefault
powered by social2s
Deixe sua opinião! Comente!