As diversas modalidades de crítica, resenhas, apresentações, prefácios e ensaios são o que podemos chamar de textos ao quadrado, isto é, são textos sobre textos. Dependem da anterior existência de uma realização criativa, narrativa ou poética – no caso da literatura –, cinematográfica ou das artes plásticas. São como as mesas redondas que giram em torno dos jogos de futebol da rodada.
Em sua Notas de literatura, o pensador alemão Theodor Adorno (1903-1969) lembra a definição do filósofo húngaro Georg Lukács para o ensaio enquanto forma narrativa que pode ser aproveitada para os gêneros críticos enquanto textos ao quadrado:
O ensaio sempre fala de algo já formado ou, na melhor das hipóteses, de algo que já tenha existido; é parte de sua essência que ele não destaque coisas novas a partir de um nada vazio, mas se limite a ordenar de uma nova maneira as coisas que em algum momento já foram vivas. E como ele apenas as ordena novamente, sem dar forma a algo novo a partir do que não tem forma, encontra-se vinculado às coisas, tem sempre de dizer a “verdade” sobre elas, encontrar expressão para sua essência.
A definição acima mostra bem como o pensamento crítico é, antes de tudo, uma forma de gerar conhecimento e criar relações, indo além das estrelinhas, polegares acima ou abaixo ou dos simples “gostei” ou não “gostei”. Mas o que nos interessa aqui é o aspecto de reordenamento presente no texto ao quadrado.
I
No último domingo, 30 de setembro, o caderno Mais!, da Folha de S. Paulo, convidou sete críticos para resenharem obras que não existem, ou melhor, que existem apenas na ficção, escritas por personagens de romances. Ao resenharem livros que não leram, os convidados tiveram que inverter a operação de potência e tirar a raiz quadrada literária, fazendo com que a própria resenha fosse uma invenção, uma ficção criada a partir de indícios dos personagens escritores e de suas obras. A coisa fica ainda mais interessante porque justamente pessoas acostumadas a escrever sobre textos dos outros é que foram convidadas para fazer ficção em forma de resenha.
A primeira é do professor de história Nicolau Sevcenko, autor de Literatura como missão, em que analisa as obras de Euclides da Cunha e Lima Barreto. Para o Mais!, ele preparou a resenha de História dos Subúrbios, de Bento Santiago, o Bentinho, protagonista de Dom Casmurro (1899), de Machado de Assis (1839-1908), no qual em certa altura da vida decide contar a história da expansão urbana do Rio de Janeiro no final do século XIX (as informações sobre as obras reais são do próprio suplemento).
Em seguida, Otavio Frias Filho, diretor de redação da Folha de S. Paulo, escreve sobre Teoria e Prática do Coletivismo Oligárquico, livro lido pelos integrantes da Fraternidade, organização subversiva que tenta promover a revolução no país comandado pelo Grande Irmão, o líder impessoal criado por George Orwell (1903-1950) para 1984, lançado em 1948.
A terceira resenha é de Reginaldo Prandi, professor de sociologia, sobre Um Miserável, de Gustav von Aschenbach, escritor alemão que protagoniza Morte em Veneza (1912), de Thomas Mann (1877-1955). Os Moedeiros Falsos (1926), de André Gide (1869-1951), é o romance real de onde o crítico literário Silviano Santiago, autor de O cosmopolitismo do pobre, resenha a obra do protagonista, Édouard, que tem o mesmo nome da obra de Gide, Os Moedeiros Falsos.
Além do título, o próximo conjunto repete também o autor, Italo Calvino (1923-1985), autor real de Se um viajante numa noite de inverno (1979) no qual apresenta ao leitor uma obra de Italo Calvino que também se chama Se um viajante numa noite de inverno. Só que o livro dentro do livro, por um problema de tiragem, se esgota no primeiro capítulo e é o leitor que acaba se transformando em protagonista ao buscar o final da história em outros livros, o que nunca ocorre. Quem resenha essa obra de um capítulo é o tradutor de Calvino no Brasil, Ivo Barroso.
Marcos Flamínio Peres, editor do Mais!, traça a resenha de O Arqueiro de Carlos 9º, romance histórico do jornalista Lucien Chardon de Rubempré, integrante da comédia humana de Honoré de Balzac (1799-1850) e que protagoniza as Ilusões Perdidas (1837-43). O professor de literatura Adriano Schwartz encerra a série com uma resenha sobre Carnovsky, de Nathan Zuckerman, alter ego de Philip Roth que aparece em diversas obras do escritor norte-americano de 74 anos.
II
Apesar de ter me esbaldado com a iniciativa, creio que os resultados foram irregulares. Apesar de dois dos convidados (Santiago e Barroso) terem já publicado ficção, faltou mais invenção às resenhas de ficção: Sevcenko chega a escrever que História dos Subúrbios já existe em forma reduzida no próprio Dom Casmurro, que traça os percursos de seus personagens pelo Rio de Janeiro da época do Encilhamento, a grande maracutaia dos primeiros anos da República; Frias começa bem, como se houvesse um acontecimento editorial, a reedição de Teoria e Prática..., mas se volta para a questão do pensamento político da primeira metade do século XX, esquecendo que a obra política dentro da ficção se passa justamente em 1984, data-título do livro de Orwell, um futuro distópico (o contrário de utópico), distante, ainda que alegórico do tempo de publicação (1948); na resenha de Prandi, o protagonista de Um Miserável repete a trajetória trágica de seu autor, o protagonista de A Morte em Veneza; Ivo Barroso especula sobre o que seria o Se um viajante numa noite de inverno inacabado, mas acaba mesmo apresentando o universo ficcional de Italo Calvino; o mesmo faz Schwartz em relação ao par Nathan Zuckerman-Philip Roth.
Peres e Santiago, em minha pretensiosa análise, chegaram às melhores soluções: o primeiro leva a obra de dentro da ficção de Balzac para o embate da história da literatura ao cotejá-la com Os Três Mosqueteiros, de Alexandre Dumas, ou Nossa Senhora de Paris (também conhecido por O Corcunda de Notre Dame), de Victor Hugo. A operação de ilusão é simples, Marcos Flamínio Peres trata Rubempré como uma pessoa real que Balzac transforma em personagem: “Dizem os rumores que o genial criador da ‘Comédia Humana’ se mordia de ciúme do personagem que introduziu em Ilusões Perdidas. E teria sido apenas por essa razão que deu cabo dele no romance subseqüente (Esplendor e Miséria das Cortesãs)”.
Silviano Santiago, por sua vez, ao tratar de um livro que é um “espelho” do livro que traz dentro de si, optou por, ao invés de tirar a raiz quadrada do formato resenha, elevar o texto crítico ao cubo, como se a duplicação interna à obra de Gide se repetisse também na resenha de Os Moedeiros Falsos, não importa se o romance do autor francês ou o de seu personagem.
III
A iniciativa do Mais!, de se aplaudir (não tem um mês que Porto Literário destacou aspectos negativos do suplemento), não é, porém, original. A resenha de um livro que não existe é um gênero literário definido por Jorge Luis Borges em A aproximação a Almotásim, texto publicado como nota em História da eternidade, de 1936.
Alfredo Monte, crítico literário de A Tribuna, em curso sobre o escritor argentino, lembrou uma vez que o conto, ao ser publicado pela revista Sur, acabou sendo lido exatamente como uma resenha à obra de Mir Bahadur Ali, escritor de Bombaim. Mas fazer o quê? Borges não inventa apenas o autor indiano, ele resume a “obra” com detalhes, cita críticos (Philip Guedalla e Mr. Cecil Roberts) e jornais que já haviam resenhado a obra, compara Ali a Chesterton, evoca passagens do texto, traduz significados filosóficos e metafísicos da narrativa, comenta as diferenças entre as edições (a primeira, reeditada quatro vezes em papel jornal, à qual Borges nunca teve acesso; a segunda, da qual mantém um exemplar, sem ilustrações). O texto tem até uma nota explicativa.
O gênero da resenha fictícia ainda apareceria na obra de Borges nos contos Pierre Menard, autor de Quixote e Exame da obra de Herbert Quain, sem contar a enciclopédia imaginária de Tlön, Uqbar, Orbis Tertius, que apareceram em O jardim de veredas que se bifurcam, textos de 1941 reunidos como a primeira parte de Ficções (1944), em cujo prólogo, o autor escreveu:
Desvario laborioso e empobrecedor o de compor extensos livros; o de espraiar em quinhentas páginas uma idéia cuja perfeita exposição oral cabe em poucos minutos. Melhor procedimento é simular que esses livros já existem e oferecer um resumo, um comentário. Assim procedeu Carlyle em Sartor Resartus; assim Butler em The Fair Haven; obras que têm a imperfeição de serem também livros, não menos tautológicos que os outros. Mais razoável, mais inepto, mais preguiçoso, preferi a escrita de notas sobre livros imaginários.
Epílogo
Talvez alguns convidados da experiência do Mais! tenham se esquecido exatamente disso: simular que os livros que resenhavam tenham sido realmente escritos.
Referências
Mais!. Resenhas inéditas de grandes obras fictícias. Folha de S. Paulo, 30 de setembro de 2007.
Jorge Luis Borges. A aproximação a Almotásim. In: História da eternidade. Tradução de Carmen Cirne Lima (1ª edição 1936).
Jorge Luis Borges. Tlön, Uqbar, Orbis Tertius; Pierre Menard, autor de Quixote e Exame da obra de Herbert Quain . In: Ficções. Tradução de Carlos Nejar (1ª edição 1944).
Todos em:
Jorge Luis Borges. Obras Completas. São Paulo: Editora Globo, 1998.
Theodos W. Adorno. O ensaio como forma. In: Notas de literatura I. Coleção Espírito Crítico. Tradução e apresentação: Jorge de Almeida. São Paulo: Livraria Duas Cidades e Editora 34, 2003 (1ª edição: 1958).