Porto Literário retoma os comentários sobre o ciclo do romance portuário, mesmo que algumas de suas obras tenham sido citadas na coluna anterior, O bonde-operário da Moscouzinha Brasileira. Só para lembrar, as obras do ciclo, como originalmente escreveu Narciso de Andrade em 1993, são os romances Navios Iluminados (1937), Cais de Santos (1939), Querô – uma reportagem maldita (1976), Os vira-latas da madrugada (1981) e Barcelona Brasileira, que só seria publicado no século XXI, além de Agonia na noite (1954), de Jorge Amado, acrescentado pela coluna.
Em três textos anteriores, tratou-se da natureza do ciclo e dos dois romances da década de 30 do século passado, escritos, respectivamente, por Ranulpho Prata e Alberto Leal. Hoje ficaremos com Querô, de Plínio Marcos.
I
Navios Iluminados e Cais de Santos, apesar de suas diferenças, são narrativas típicas do momento em que foram publicadas. Foram escritos em terceira pessoa, com o narrador acompanhando os destinos dos personagens por meio de uma prosa de modelo realista cuja matriz é o grande romance do século XIX, que se manteve hegemônico por grande parte do século seguinte. Esse modelo era reforçado ainda pela literatura com alto teor de denúncia social – ainda que com variantes – que era produzida no Brasil na década de 30.
Já Plínio Marcos publicou seu romance durante a ditadura militar. No meio da década de 70, o histórico de publicações de Plínio Marcos havia imposto um obstáculo extraliterário ao dramaturgo: conta o site oficial do autor que, receoso de que mais uma peça como as que havia anteriormente escrito não iria passar pela censura, ele decide então publicar sua nova obra no formato de romance, gênero literário desfrutado individualmente, sem a catarse do palco.
Sem a força do palco e a interpretação dos atores, a força do texto de Querô – uma reportagem maldita vem então de uma mudança na condução da história: Plínio Marcos despreza o narrador em terceira pessoa, que acompanha o desenrolar dos fatos a partir de uma certa distância, e dá espaço ao próprio protagonista, o jovem Querô, que conta sua história a um repórter que elabora a reportagem referida no título. Em A estrutura narrativa de uma obra de denúncia social, Porto Literário mostrou que os oito primeiros dos dez capítulos do romance são narrados em primeira pessoa pelo protagonista e só no nono capítulo descobrimos que o texto é o depoimento de Querô a um repórter que, por sua vez, é quem toma a narração no capítulo final e encerra o romance. Escrevi na ocasião que esse mecanismo narrativo funcionava para o efeito de denúncia social, que é também temática constante da literatura nacional do século XX. Veremos agora de onde vem a força e o acerto desta narrativa.
II
Foi publicado no início do ano no Brasil o mais recente livro da ensaísta argentina Beatriz Sarlo, Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. Nele, a escritora analisa como a literatura testemunhal, por causa do sumiço e da destruição de documentos promovidos pelo terrorismo de Estado dos regimes militares da América do Sul, passa a desempenhar importante papel na reconstituição do que ocorreu nos porões das ditaduras e na condenação dos responsáveis pela violação dos direitos humanos de milhares de cidadãos, principalmente na Argentina, onde o testemunho e os relatos de memória de presos políticos são considerados provas:
Como instrumento jurídico e como modo de reconstrução, ali onde outras fontes foram destruídas pelos responsáveis, os atos de memória foram uma peça central da transição democrática, apoiados à vezes pelo Estado e, de forma permanente, pelas organizações da sociedade. Nenhuma condenação teria sido possível se esses atos de memória, manifestados nos relatos de testemunhas e vítimas, não tivessem existido.
Beatriz Sarlo aponta suas conclusões para o futuro, a partir de um presente em que o relato pessoal encontra-se degastado pela proliferação de auto-biografias, cinebiografias, blogs, invasões de privacidades de celebridades, revistas de fofocas, auto-elogios disfarçados em relatos de sucesso empresarial ou amoroso e por aí afora. Mas retomemos primeiro o que seus escritos sobre a literatura de testemunho podem dizer sobre Querô.
Utilizando as análises da pensadora argentina, podemos ver que Plínio Marcos acerta, em primeiro lugar, porque o relato da experiência em primeira pessoa pressupõe “uma presença real do sujeito na cena do passado”. Ao transformar o protagonista em narrador, o autor potencializa o alcance de seu discurso; a experiência ganha tons de verdade e dá fidelidade ao ocorrido. A literatura de testemunho se utiliza dos sentidos, a experiência e seu relato unem o corpo à voz.
Por outro lado, Sarlo alerta para a impossibilidade de contarmos com o relato integral sobre a experiência dos campos de concentração que, ao abusarmos da licença poética, é mimetizada no relato do protagonista da obra de Plínio Marcos:
A verdade do campo de concentração é a morte em massa, sistemática, e dela só falam os que conseguiram escapar a esse destino; o sujeito que fala não escolhe a si mesmo, mas foi escolhido por condições também extratextuais. Os que não foram assassinados não podem falar plenamente do campo de concentração; falam então porque outros morreram, e em seu lugar. Não conheceram a função última do campo, cuja lógica, portanto, não se operou por completo neles. Não há pureza na vítima que tem condições de dizer “fui vítima”. Não há plenitude nesse sujeito.
Sabedor – mesmo que intuitivamente – do mecanismo do relato testemunhal, Plínio Marcos constrói então a passagem entre os dois narradores entre os capítulos nono e décimo, isto é, Querô, o jovem que acaba fuzilado pela polícia, não tem condições de terminar seu relato justamente porque foi “plena” sua experiência no “campo de concentração” (e não seria esse um nome mais adequado ao sistema carcerário que maltrata as crianças e adolescentes pobres da nação?). Enfim, para que a história de Querô seja contada, um outro narrador é necessário para completar o enredo, ainda mais quando esse outro é um jornalista que, por dever de ofício, tem a função de relatar a verdade dos fatos, mito do qual o autor muito bem se aproveita para amplificar o efeito de caso real que tem sua ficção. Como a denúncia social mantem outros meios de expressão, muitas vezes mais eficazes, a ficção contribui mais para a sociedade ao refletir sobre a natureza humana.
Epílogo
O excesso de subjetividade no mundo contemporâneo, essa profusão de “eus” exemplificada nos exemplos acima, tem como antídoto, aponta Sarlo, a própria subjetividade do fazer artístico, diferente da subjetividade narcisística porque é ponte, e não muro, entre os seres humanos. Nesse início de século, é principalmente a literatura que tem a função de substituir o desgastado discurso da primeira pessoa. É o que fez Plínio Marcos ao se apropriar das características dos relatos testemunhais para fazer ficção. A coluna conclui com o último parágrafo de Tempo passado:
A literatura, é claro, não dissolve todos os problemas colocados, nem pode explicá-los, mas nela um narrador sempre pensa de fora da experiência, como se os humanos pudessem se apoderar do pesadelo, e não apenas sofrê-lo.
Plínio Marcos. Querô – uma reportagem maldita. São Paulo. Edição do Autor (4ª edição, 1ª edição de 1976).
Beatriz Sarlo. Tempo passado: cultura da memória e guinada subjetiva. São Paulo: Companhia das Letras; Belo Horizonte: Editora da Universidade Federal de Minas Gerais, 2007.