Quarta, 01 Mai 2024

Nesta semana, Porto Literário dá um tempo no ciclo do romance portuário para tratar de um lançamento sobre a história de Santos: A “Moscouzinha” brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos (1930-1954), do historiador Rodrigo Rodrigues Tavares. A obra avança a pesquisa do autor sobre a repressão aos trabalhadores e entidades comunistas em Santos iniciada em O porto vermelho: a maré revolucionária (1930-1951), seu livro anterior.

 

A “Moscouzinha” Brasileira... é fruto da dissertação de mestrado de Rodrigo Tavares e foi publicado como o sexto volume da coleção Histórias da repressão e da resistência, que trata da polícia política entre as décadas de 30 e 50.

 

Podemos dizer que a parte do livro, Rebeldes em cena, gira em torno do bonde, meio de transporte utilizado pelos trabalhadores da cidade para se locomover entre a casa e o trabalho, mudança que refletia também a transição entre duas identidades.

 

Quando o trabalhador apanha o transporte em seu bairro, ele está envolvido, em geral, com sua nacionalidade – os espanhóis e italianos no Campo Grande, os portugueses no morro do São Bento, os japoneses na Ponta da Praia (estes mais isolados); o censo de 1934, encontrado pelo pesquisador em um boletim do Departamento Estadual de Estatística, mostrava que 26,4% da população santista, em torno de 150 mil pessoas, era formada por estrangeiros.

 

Mas isso fica para trás no bonde, lugar em que a identidade proletária assume o lugar da identidade nacional, ligada à comunidade. Rodrigo Tavares trata o transporte, formado por uma frota de 200 veículos que percorriam 67 quilômetros de trilhos, por “bonde-operário”:

 

Ao cruzar os mais diversos bairros da cidade, o bonde aproximava todas as nacionalidades, raças e culturas; deixava para trás o bairro, o reduto da família, da casa e dos vizinhos. Enfim, unia os passageiros na condição de operário. Esse caráter classista deve ser ressaltado, visto que nesse meio de transporte as classes sociais tendiam a não se misturarem. As pessoas mais abastadas utilizavam automóveis ou então linhas e horários específicos do bonde.

 

Como primeiro espaço social da cultura operária no dia-a-dia, o bonde era considerado pelos militantes comunistas um “local-alvo de propaganda”. O próprio deslizar do veículo pelos trilhos permitia que os trabalhadores pudessem ler panfletos e jornais durante o percurso. Tavares resgata um relatório de 1936 da Delegacia de Polícia de Santos em que o investigador acompanha o espanhol Pedro Higueira. O texto abaixo é a transcrição de um trecho do relatório usada pelo autor em A “Moscouzinha” Brasileira...:

 

No dia 21 viajava num bonde 17 com destino ao dentro da cidade e, no percurso, falava sobre o comunismo expondo a sua conformidade com os legalistas de Madri  [referência à Guerra Civil Espanhola]. Tudo não seria muito ao chegar à Praça José Bonifácio, ao avistar uma casa vendedora de capas, Higueira [não] não concitasse os passageiros do bonde a que se apoderassem cada um de uma capa pois todos eram operários e necessitavam. [Em outro dia] Higueira viajava num bonde da Companhia City, vindo do bairro do Campo Grande para o centro. Esse veículo, na hora do meio-dia, transporta, preferencialmente, operários que procuram o trabalho, após o almoço. O indiciado, consciente do meio em que se encontrava, entrou a propagar o comunismo, propaganda em que se empregou até que o bonde chegou à praça José Bonifácio.    

 

Além da militância dentro do bonde, o próprio serviço, tocado pela concessionária  “imperialista” Cia City, era alvo da preocupação dos trabalhadores comunistas, que criticavam o preço da passagem. Assim, o bonde se transformava num espaço da luta de classes. O imaginário do bonde era tão forte que, lembra o historiador, o veículo abre Parque Industrial, romance de Patrícia Galvão, a Pagu, que inaugura em 1932 a literatura proletária no Brasil.

 

São Paulo é o maior centro industrial do mundo da América do Sul: O pessoal da tecelagem soletra no cocoruto imperialista do “camarão” [modelo de bonde] que passa. A italianinha matinal dá uma banana pro bonde. Defende a pátria.

 

A pesquisa ressalta também que mesmo sendo funcionários da City, os condutores e cobradores da companhia eram considerados pela militância comunista “proletários explorados pelos seus patrões”. E aqui lembro um personagem de uma crônica de Plínio Marcos, um português cobrador da linha 19 que cruza o Macuco que costumava embolsar parte do valor das passagens com o objetivo de juntar dinheiro para voltar à terra natal.

 

O bonde está presente também, como vimos na semana passada, em Indiferença, episódio de Cais de Santos (1939), romance de Alberto Leal, em que o veículo, também da linha 19, atropela e mata uma criança na altura do Paquetá. Já no romance Navios Iluminados (1937), de Ranulpho Prata, o bonde surge na narrativa para marcar as diferenças sociais. O protagonista, José Severino de Jesus, só anda de bonde, e também na linha 19, quando vai do Macuco até à casa de um figurão na distante Ponta da Praia para ser apadrinhado e conseguir um emprego na Companhia Docas de Santos. Dias depois, para economizar, ele prefere, mesmo com o emprego  garantido, caminhar do bairro portuário até a Praça Mauá, no centro, para tirar um retrato para o documento de identificação da empresa.

 

Já a idéia de bonde enquanto veículo da luta de classes é tratado na literatura de forma extrema em Barcelona Brasileira (2003), de Adelto Gonçalves, romance histórico escrito na década de 1980 cujos personagens estão envolvidos com o clima anarquista do movimento operário de 1917. Neste romance, o bonde é justamente o local escolhido por um grupo de grevistas para assassinar um feitor fura-greve.

 

Epílogo

A coleção Histórias da repressão e da resistência é fruto do mergulho de pesquisadores no Arquivo Público do Estado de São Paulo, que guarda os documentos históricos produzidos pelo Departamento Estadual de Ordem Política e Social do Estado de São Paulo, o DEOPS, material que é inventariado pela Universidade de São Paulo por meio do Projeto Integrado Arquivo/Universidade (Proin), que completou 10 anos em 2006.

 

A coleção é composta, além de A “Moscouzinha Brasileira”, por O risco das idéias – Intelectuais e a Polícia Política, de Álvaro Gonçalves Antunes Andreucci; Caça às Suásticas – O Partido Nazista em São Paulo sob a Mira da Polícia Política, de Ana Maria Dietrich; Etnicidade, nacionalismo e autoritarismo – a comunidade alemã sob vigilância do DEOPS, de Eliane Bisan Alves; O Suspeito através das lentes – O DEOPS e a Imagem da Subversão (1930-1945), de Fernanda Torres Magalhães; e Prisioneiros da Guerra – os “Súditos do Eixo” nos campos de concentração brasileiros (1942-1945), de Priscila Ferreira Perazzo.

 

Sobre a coleção, a professora Maria Luiza Tucci Carneiro, do Proin, escreveu o seguinte na contracapa do livro de Rodrigo Tavares:

 

Essa coleção nos permite avaliar as ações de instituições brasileiras que têm como função a seleção e o controle do cidadão. Por meio desses estudos temos a oportunidade de conhecer o mundo da repressão e também de reconstituir o mundo fantástico da resistência, que, felizmente, não se calou durante os momentos de autoritarismo.

  

Referências:

Rodrigo Rodrigues Tavares. A “Moscouzinha” brasileira: cenários e personagens do cotidiano operário de Santos (1930-1954). São Paulo: Associação Editorial Humanitas e Fapesp, 2007.

 

Rodrigo Rodrigues Tavares. O porto vermelho: a maré revolucionária (1930-1951). Módulo VI – Comunistas. Coleção Inventário DEOPS. São Paulo: Arquivo do Estado e Imprensa Oficial, 2001.

 

Adelto Gonçalves. Barcelona Brasileira. São Paulo: Publisher Brasil, 2003.

 

Alberto Leal. Cais de Santos. Rio de Janeiro: Edição da Cooperativa Cultural Guanabara, 1939.

 

Ranulpho Prata. Navios Iluminados. Rio de Janeiro: José Olympio, 1937.

 

Plínio Marcos. Nas quebradas do mundaréu. São Paulo: Mirian Paglia Editora de Cultura, 2004 (1ª edição de 1973).
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