Quinta, 02 Mai 2024

Cais de Santos (1939), de Alberto Leal, foi lançado dois anos depois de Navios Iluminados, de Ranulpho Prata. O que o Porto Literário de hoje vai tentar é colocar em perspectiva histórica as duas obras que iniciam o ciclo do romance portuário.

 

Começo admitindo um erro: ao apresentar as obras do ciclo do romance portuário, fui contrariar o poeta Narciso de Andrade, que nomeou o ciclo e listou suas obras, e tachei o Cais de Santos como um livro de contos. Fui lá na biblioteca da Humanitária, abro o único exemplar que conheço do volume e leio lá, na primeira página, bem abaixo do título: “romance”. Em minha parca defesa só posso dizer que os episódios do livro podem ser lidos de forma independente, como se fossem contos, ainda que o protagonista reapareça em muitos deles. Errei também ao localizar a publicação do livro na década de 40, quando, na verdade, como escrito acima, é de 1939. Peço desculpas aos leitores.

 

I

Se Navios Iluminados tratou do universo do trabalho portuário, com seu protagonista deixando o sertão da Bahia atrás do salário da estiva em Santos, Cais de Santos traz para a literatura histórias que ocorrem no espaço entre o cais e o mundo urbano. O modelo destes relatos é o episódio que abre o livro,  Indiferença, que inaugura o formato da literatura que se localiza no meio de campo entre o cais e a calçada.

 

Na verdade, o sentido é o inverso. É da calçada para o cais que segue o protagonista de Indiferença, um garoto de 13 anos do Paquetá que vai pescar no canal do estuário. E, para chegar lá, entra pelo portão lateral da Companhia Docas de Santos, o “portão do lado” é a chave desta narrativa que atua pelas franjas do cais.

 

O primeiro marco deste caminho em direção ao cais são os trilhos do bonde e dos trens:

 

O moleque ia depressa, no seu passo vivo, e num instante atravessou os trilhos do bonde e as vinte linhas duplas das locomotivas do cais, que andavam de cá para lá, bufando, empurrando ou arrastando vagões carregados e vazios, galeras, tenders, vagões-tanques de óleo e gasolina, da Texaco, da Atlantic Refining Company, da Standard Oil, da Anglo-Mexican, da Caloric...

 

Assim que passa pelos trilhos, ele se acomoda na sombra do guindaste à beira do paredão e essa sombra sob o guindaste é outra imagem que mostra a inserção periférica do personagem no ambiente do porto. Só depois de passar por estes dois portais (a porta do lado e a sombra) é que o moleque vê os navios do porto.

 

À sua direita, enorme, um transatlântico da Mala Real Inglesa carregava cachos verdes de banana nanica, e o guindaste guinchava, uivava, girava, e descia pela abertura escancarada do porão, até a terceira coberta, a rede de cordas que os estivadores lá no fundo abriam e descarregavam, arrumando a carga, cacho sobre cacho.

O guindaste tornava a uivar, suspendia a rede vazia, que era descida sobre uma galera carregada de bananas, onde outros homens trabalhavam, suados e seminus.

 

Em direção ao cais, o moleque acena para o condutor do guindaste, o seu Quincas, que o cumprimenta de volta. A relação do moleque com o motorneiro tem a função narrativa de reforçar a relação mediada. O protagonista não trabalha no porto como o de Navios Iluminados, mas pesca por ali e conhece quem lá trabalha.

 

E o momento em que o moleque finalmente pesca um bagre é aquele no qual o ambiente urbano já se transforma num burburinho distante. Mas a cidade volta com tudo e seus barulhos se misturam no canal do estuário quando o bonde da linha 19 provoca uma tragédia na ponte do Paquetá:

 

De repente, lá para trás, junto à linha do 19, subiu um grito, que um clamor de vozes logo abafou.

O moleque virou-se: corria gente de todos os lados, cercando o bonde. Em pouco tempo, estava ali uma multidã, vociferando, gritando, os de trás querendo passar para a frente, na ânsia de olhar.

 

O peixe fisga a linha e a atenção do pescador. Com isso, não sabemos o que ocorre na ponte onde a multidão vai se desfazendo e os automóveis recuperam os minutos perdidos com mais velocidade.

Só depois que um marujo pergunta ao pescador o que passara por ali é que os sons da cidade tornam à narrativa:

 

Um grito estridente de mulher veio da ponte, tão agudo e metálico como se fosse um grito de dor soltado por um daqueles guindastes, subitamente humanizado.

(...)

Ouviu-se um guincho forte que arranhava o ouvido, mas o moleque não pode saber se era uivo de guindaste ou grito da mãe da criança que o bonde matara.

 

Alheio à cidade, o moleque não se importava com o que acontecia na ponte. Ele “era um guri de treze anos, e já sabia que cada um vive por si e Deus para ninguém quando se é pobre e se tem um pai bêbado e uma mãe doente do peito”. Seu nome era José Praxedes, mas também indiferença.

 

Referências:

Alberto Leal. Cais de Santos. Rio de Janeiro: Edição da Cooperativa Cultural Guanabara, 1939.
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